UM

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Quando você vive no Nilue, ou você deixa as sombras te consumirem ou aprende a evitá-las.

Sorri enquanto me lembrava do aviso que uma senhora havia me dado quando atravessei o rio pela primeira vez, mal uma adolescente, que obviamente acabara de fugir dos currais de escravos.

Fugas de escravos eram raras, e uma garota de quatorze anos sem ninguém no mundo não tinha a menor chance de escapar. Até o terremoto, quase dez anos atrás. Então muitos de nós haviam escapado. Crianças, adultos, idosos, humanos ou não. E corremos para o único lugar onde todos sabiam que o Rei não nos caçaria: o Nilue e suas sombras constantes. O terremoto destruiu muitas coisas, arruinou várias fortunas em uma única noite. Mas o Nilue permaneceu intocado, como se as sombras protegessem as casas frágeis construídas por aqueles que ainda sobreviviam. E, naquela noite, as sombras se alimentaram dos que estavam assustados demais para viver.

Olhei para baixo, empoleirada no alto da muralha que separava a cidade de Delarna do Nilue. Era fácil escalá-la, para aqueles que sabiam ver as armadilhas, e eu podia sentir as sombras contra minha pele, como o toque de um amante. Elas estavam sorrindo, testando a muralha e imaginando quanto tempo levaria para que a transformassem em pó.

- Não muito tempo, eu sei. - minha voz era um sussurro no vento, fraca o suficiente para não ser carregada. Até mesmo as pessoas do Nilue se incomodavam quando me viam conversando com as sombras. - Mas é assim que nós, humanos, somos. Precisamos fazer alguma coisa, mesmo que não funcione. Então poderemos dizer que tentamos. - como eu continuava fazendo.

Os gritos finalmente chegaram aos meus ouvidos, e sorri quando vi as luzes se aproximando da muralha. Olá, Guarda Real. Aquilo não significava muito. Pela capa de Aven, não significava nada. Mas ao menos eu não estava sentada em minhas mãos, reclamando o dia todo.

As luzes se aproximaram ainda mais, e me levantei. A luz de um rosa pálido da lua dos amantes atrás de mim me transformava em um alvo fácil, mas não me importava. Eles não atirariam até que estivessem mais perto, até que pudessem fisgar meu corpo e garantir que eu caísse do seu lado da muralha. Esperei até que um dos guardas apontasse para mim, gritando, e sorri quando todos olharam na minha direção, minhas mãos fazendo um sinal antigo, claro contra o luar.

Os guardas começaram a correr, gritando ainda mais.

Ainda sorrindo, mergulhei nas sombras do Nilue e desapareci.

*****

Viajar com as sombras sempre me dava um prazer único. Era um toque do proibido, de algo que ninguém mais podia fazer. Perigoso, sensual... E seguro. Eu sabia que ninguém de Delarna acreditaria que uma pessoa pudesse sobreviver depois de saltar da muralha, e por isso diziam que eu era um fantasma. Um espírito raivoso, buscando vingança.

Estava sorrindo quando saí das sombras para a terra rachada da rua. Dois dos reivindicados estavam encolhidos ali perto, me encarando com olhos arregalados. Eu os ignorei enquanto seguia em frente, fingindo não ver a forma como suas peles se esticavam sobre seus ossos, como se não tivessem mais nenhuma gordura, nenhum músculo. Apenas pele e osso, todo o resto devorado pelas sombras. Eles eram os fracos, os reivindicados. Escolhiam deixar que as sombras os consumissem lentamente e recebiam uma certa proteção. Antes de perderem seus músculos eles costumavam fazer coisas estranhas, perturbadoras, e falavam de tempos passados e futuros. Eram os olhos, as mãos e a boca das sombras.

As ruas estavam quase silenciosas enquanto ia para casa. Aqui e ali eu podia escutar um dos reivindicados murmurando alguma coisa, mas não parei para ouvir. Se precisasse saber, as sombras me diriam. Sempre havia sido assim.

Nilue (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora