DOIS

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O crepúsculo é a hora mais traiçoeira do dia. É um momento entre a luz e as trevas, um segundo em que as sombras se tornam vivas.

O sol estava se pondo quando Asselya me encontrou. Eu estava sentada do lado de fora de uma cervejaria, conversando com o vendedor e bebendo a cerveja fraca que ele sempre separava para quem resolvesse parar ali. Poucas pessoas ainda estavam nas ruas, a maioria delas quase correndo, tentando chegar em casa antes de escurecer.

– Você viu Cor? – ela perguntou antes mesmo de cumprimentar o homem ao meu lado.

– Não... Ele provavelmente já está em casa. – respondi lentamente, a encarando. Asselya parecia preocupada, e nem mesmo a tinta que cobria sua pele púrpura conseguia esconder seu cansaço. – O que aconteceu?

– Toda a Guarda Real parece estar ao redor da muralha.

Me levantei com um pulo, esvaziando meu copo ao mesmo tempo. O vendedor nem esperou que eu me despedisse e já estava me dizendo para me apressar. Um dos seus filhos era da mesma gangue que Cor, me lembrei.

Asselya segurou meu braço enquanto começávamos a correr, as sombras abrindo um caminho para nós. Nossa casa ficava a menos de dez minutos dali, mas agora essa distância parecia enorme. Precisávamos saber se Cor estava em casa, e então eu iria para a muralha, mesmo que ele estivesse seguro. A Guarda Real tinha dois usos para as pessoas do Nilue que prendiam: as arenas de luta ou o mercado de escravos. Eu me lembrava bem demais do que significava viver nos currais de escravos, e nunca deixaria que as pessoas com quem tinha passado os últimos nove anos fossem levadas para lá.

A casa estava completamente escura, sem nem um sinal de luz passando entre as tábuas da janela. Cor não estava ali. Abri a porta e entrei com passos rápidos, enquanto Asselya acendia uma vela. Meu par de adagas estava no seu apoio na parede do meu quarto, ao lado da porta, e eu as peguei, as enfiando nas minhas botas. Eu raramente usava as adagas, mas ninguém enfrentava a Guarda Real desarmado.

– Tamisa... E se isso for por causa do que roubou ontem? – Asselya perguntou, ainda na sala.

Como se eu fosse roubar alguma coisa que trouxesse a atenção do Rei para o Nilue. Não era tão louca assim. Aqueles escudos eram coisas de lendas meio esquecidas e eu sabia que o Rei tinha ajudado a apagar toda a nossa história. Por algum motivo, ele queria que esquecêssemos que existiram outros reinos, uma vez, e que cada um deles carregara forças diferentes. Talvez a história houvesse sido apagada para que ninguém tivesse esperança de uma vida diferente... Mas o fato era que o Rei não iria querer que o povo se lembrasse daqueles escudos, e isso significava que não atrairia atenção para a existência deles.

– O Rei precisaria admitir que os escudos existem. E isso quer dizer admitir que todas as lendas sobre os reinos antigos são verdades. Ele não vai fazer isso. – falei depressa, e então gelei. – Kihamari falou algo nesse sentido.

A expressão de Asselya se fechou e ela me empurrou na direção da porta.

– Vai! Agora!

As sombras me envolveram assim que pisei fora de casa.

***

A Guarda cercava a muralha. O sol já havia se posto, e isto queria dizer que os portões já estavam fechados. Todos que precisavam sair de Delarna já tinham saído, mas a Guarda Real ainda estava posicionada em uma linha longa na frente da muralha. Do meu posto favorito no alto da muralha eu podia ver tochas se movendo nas ruas mais próximas e ouvir as ordens gritadas. Eles estavam fazendo uma busca pelas casas.

Nilue (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora