CINCO

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O medo pode ser sua arma e sua fraqueza. E as consequências, não as intenções, dirão ao mundo quem você realmente é.

Assisti ao nascer do sol, ainda vestindo minhas roupas de dormir e segurando um cobertor ao meu redor. Estava perto do rio, em um ponto de onde ainda podia ver a muralha, no limite de onde os homens do Rei tinham passado a noite se movimentando. Quase não havia movimento no alto da muralha agora, mas às vezes eu ainda via alguém correndo e tentando se manter escondido.

Um movimento à minha esquerda chamou atenção e lancei um olhar para as margens do rio. Duas famílias – quatro adultos e duas crianças – estavam se movendo em minha direção, provavelmente vindo dos limites do Nilue. Já havia luz do sol o suficiente para que estivessem seguros perto do rio. Ao menos alguém tinha acreditado em mim, então.

Alguém no alto da muralha gritou. Tinham visto as famílias, também. Como se aquilo fosse um sinal, um homem se levantou, o amarelo vivo dos uniformes da Guarda Real claros sob a luz do sol. Mais instruções gritadas, e agora eu via pessoas saindo de suas casas e carregando o que podiam, mesmo que as sombras ainda estivessem perto demais para ser seguro. Tentei contê-las, dar uma chance das pessoas chegarem na margem do rio, mas as sombras estavam famintas, como se ter consumido os guardas na outra noite só tivesse aumentado seu apetite.

Uma mulher tropeçou e um homem parou para ajudá-la. Contive meu grito, vendo os dois serem envolvidos pelas sombras. Se tivessem sorte sairiam dali como reivindicados, mas pelo menos as crianças que estavam à frente da mulher tinham escapado.

A primeira caixa foi jogada de cima da muralha. Observei as sombras a cercarem enquanto caía, só para serem afastadas quando ela bateu no chão em um clarão de luz. O fogo se espalhou, como se estivesse queimando até mesmo o chão, e não demorou muito para que alcançasse a primeira casa. A madeira pegou fogo em um instante, e as pessoas começaram a gritar enquanto corriam.

Mais caixas foram jogadas e todas as casas mais próximas da muralha pegaram fogo. Deixei meu cobertor cair no chão e corri para o meio das sombras, tentando ajudar as pessoas que tentavam escapar. Não conseguia conter as sombras, não mais, não quando elas estavam tentando escapar do fogo, também. Mas eu podia ao menos tentar tirar algumas daquelas pessoas dali. Uma garotinha tropeçou e as sombras correram para ela. Eu a peguei, correndo para o rio e a deixando ali na margem antes de correr de novo.

De repente havia uma mão no meu ombro, me segurando no lugar.

– As bruxas estão cercando a área. Não volte pra lá.

Encarei Selir, xingando. "Cercando a área" queria dizer que estavam construindo uma barreira mágica que conteria o fogo naquele lugar. Mas as pessoas que ainda estavam ali não conseguiriam sair, também.

E então me lembrei que ele não era mais o aprendiz de Kihamari.

– Como você sabe? E o que está fazendo aqui?

– Eles chamaram todos os renegados assim que o sol começou a nascer. Disseram que tinham sentido a magia antes do amanhecer. Todos os usuários de magia do Nilue estão aqui e ninguém sabe o que isso é.

As bruxas haviam sentido a magia? Mas que magia? Mas aquilo fazia sentido. Tudo tinha pegado fogo, até mesmo a terra seca entre a muralha e a primeira linha de casas. Aquilo não era natural, só podia ser algum tipo de feitiço. Nunca tinha ouvido falar de nada como aquilo, nem mesmo nas histórias que minha avó costumava contar. Voltei a olhar para onde as chamas estavam, tentando ignorar os gritos e as pessoas que passavam por nós, correndo. Quando tinha começado a me preocupar com alguém além daqueles que eram parte da minha vida? Me lembrei das palavras de Selir, quando me contou sobre como ele tinha vindo para o Nilue. Ninguém nunca fazia nada. Talvez fosse hora de mudar aquilo. Eu não tinha nada a perder.

Nilue (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora