Toc, toc.

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Envolto sobre quatro paredes frias, deslizo sob o polegar um feed abarrotado de mil e uma porcarias sem sentido, mas que, naquela hora, era o que me impedia de sofrer com um eterno tédio de sexta-fera à noite. Lá fora chovia, inundando as ruas do meu bairro em longos córregos e vazando pelos bueiros que, cedo ou tarde, se entupiram outra vez — uma rotina comum pra esses lados do mundo, mas uma ameaça crescente quando se sabe que a época de trovoadas está tão próxima.

Suspiro, já cansado, atirando meu celular pra um canto largado da cama. Não era pra eu tá lá fora curtindo a folga? Qual é, trabalhando seis dias por semana, não posso aproveitar uma folguinha sequer? Justo hoje, no meu maldito dia de relaxar, o mundo resolve que é hora de tomar banho, me deixando aqui, trancado nesse muquifo, mofando tanto quanto a cômoda da cozinha! Que se dane! Me levando num único salto e marcho irritado até a sala — "vou ver tevê".

O porém é que, entre meus passos firmes, um toque gélido de curiosidade irrompe meu ser: duas batidas. Paro, olho ao meu redor, mas nada. "deve ser um galho lá fora", é o que penso, então só sigo o meu caminho, dando mais um passo.

"Toc, toc".

Me prendo ao chão mais uma vez; rastreio com os ouvidos o local, indo de canto à canto à caça da origem daquilo. Nada. Desconfiado, deslizo o pé no ar, avançando ao toque do piso branco.

"Toc, toc".

Agora, num salto, me volto à origem daquilo como se fosse um caçador mirando em seu alvo: a porta. No mesmo instante, num girar de calcanhares, aquele som novamente: 

"Toc, toc". 

Engulo em seco; quem poderia ser há essa hora? Nesse clima?

— Quem é?

As palavras rasgam na garganta. Mais uma vez, nada. Flexiono os músculos, movimentando a coxa, joelhos e pernas, avançando o corpo em mais um passo meticulosamente calculado.

"Toc, toc".

Agora eu tinha a minha confirmação, vinha realmente da minha porta, e, de alguma forma estranha, o gatilho de toda essa bizarrice eram... os meus passos? Com isso... não, é besteira.

Ergo a postura, jogando de lado a baboseira da paranoia, e inicio a pior escolha de longe naquela noite: Uma caminha.

Passo sobre passso, piso sobre piso, toque sobre toque; essa engrenagem se monta à minha frente, formando uma realidade regida à um compasso meticuloso: meus pés. Dançavamos uma valsa de movimento único, mas a sinfonia era um enorme ponto de interrogação que surgia por sobre a minha cabeça. "O que diabos está acontecendo?".

Ignorei qualquer paranoia, afinal isso é ridículo, só que a realidade cuspia sobre a minha seriedade numa tilintar de "toc, toc" por através da porta. Um passo, "Toc"; dois passos, "Toc, toc". Segui assim: passo, toc; passo, toc; passo, toc. Acelerei: passo longo, toc, toc, toc; passo largo, toc, toc, toc, toc; um salto, toc, toc, toc, toc, toc; uma investida contra o abismo, toc, toc, toc, toc, toc, toc; um delírio do absurdo, toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc; uma dor alucinante do peito, toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc; um último passo desesperado, toc, toc toc, toc, toc, toc, toc, toc, toc; um homem parado de frente à sua porta, nenhum toc.

Respirei fundo suando frio. Aquilo era loucura; eu estava ficando louco! Com mãos trêmulas tencionei os músculos mais uma vez; deslizei os dedos no ar num movimento compulsório, voando naquele clima úmido por um breu que era a minha vista, rumando em direção à tranca da maçaneta. O toque gelado parecia me trazer de volta à realidade: lá fora, ainda chovia; um gotejar pesado sobre a água que se acumulava na rua, agora, talvez, não podendo mais escoer nos bueiros lotados; aqui dentro, uma respiração abafada tomando conta do ambiente — a minha. Parei, piscando repetidas vezes para evitar que aquela gota de suor que se formou em minha testa não parasse no meu olho. Segurei o fôlego, predi a postura, travei a cara e, no vácuo da tensão, girei a tranca: estava aberta.

Meus dedos frios subiram rapidamente em busca da maçaneta. É só abrir, é só abrir, é só abrir.

Minha mente então dissolveu num clarão:  — Não vai haver nada; é óbvio que não vai! — Murmurei baixinho, tentando me reconfortar — É só uma árvore idiota.

Mas então por que de toda essa ânsia? Desse pavor? O que explicava esse sentimento de que, seja lá o que tiver do outro lado dessa porta, assim que eu a abrir e o deixar entrar, eu vou sofrer o destino mais cruel que se possa imaginar? Não, eu não vou abrir...

Chacoalhei a cabeça furiosamente: "Não há nada lá!". Berrei no mundo tenebroso que era o meu cérebro, tremi o corpo num espasmo súbito e, girando o pulso, as dobradiças da porta começaram a funcionar, revelando, do outro lado do batente, aquela visão maldita: ali tinha... nada...

Ri baixinho comigo mesmo; então solucei, gargalhei, pulei em movimentos extremos de alegria e delírio

— Não tinha nada! — Era o que eu dizia aos ventos.

Agora, nesse momento, minha respiração diminuía; eu podia ouvir o pulsar nas veias, o sobe e desce do peito; então foi aí que congelei uma última vez, e, naquela segundo, percebi a desgraça que o destino havia lançado sobre mim: para cada pulsar do coração, ecoava dentro do meu crânio um solene, profano e visceral "toc, toc".


Fim

HISTORIETAS DE HORROR [série de contos]Onde histórias criam vida. Descubra agora