Pai e filha

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Alguns meses haviam se passado, e, mesmo à distância, eu mantinha o foco na missão que eu havia abraçado: ser a força que Júlia precisava para suportar as mudanças devastadoras que haviam transformado sua vida. Durante esse tempo, Júlia confiava em mim a ponto de me contar tudo o que acontecia em sua casa. Ela compartilhava detalhes que me deixavam, ao mesmo tempo, perplexo e angustiado. Sua mãe, frequentemente ausente, saía para festas e às vezes ficava dias sem voltar para casa. Certo dia, Júlia me ligou desesperada. Sua voz, carregada de medo, tremia enquanto ela dizia que sua mãe havia saído novamente e ainda não tinha voltado. Mais do que a preocupação com a ausência da mãe, havia algo a mais em sua voz que me intrigava profundamente: ela não queria, de forma alguma, ficar sozinha com o pai.

Aquele pedido me deixou inquieto. Por que ela temia tanto estar sozinha com ele? No início, pensei que talvez fosse apenas a ansiedade causada pela ausência da mãe. Mas havia algo diferente na maneira como ela se expressava, algo que me fez questionar. Eu não resisti e, com cuidado, perguntei por que ela não queria ficar sozinha com ele. Após alguns segundos de silêncio – segundos que pareciam uma eternidade – Júlia começou a me contar tudo. E, naquele momento, o que eu ouvi fez meu mundo desmoronar.

Com a voz baixa e carregada de dor, ela revelou que seu pai era um homem agressivo, tanto com ela quanto com sua mãe. Ela contou que ele as agredia, física e verbalmente, e que, na maioria das vezes, elas viviam sob o mesmo teto com medo constante. Conforme Júlia narrava as crueldades que já havia presenciado e sofrido, um nó se formava na minha garganta. Eu mal podia acreditar que uma criança tão doce, tão cheia de sonhos, estava enfrentando um inferno dentro de sua própria casa. Aquele homem, que deveria ser um porto seguro para sua família, era, na verdade, o responsável por destruir sua estabilidade emocional.

A partir daquele momento, eu percebi que minha missão ia muito além do que eu imaginava. Eu, aos 17 anos, não era apenas um amigo para Júlia. Tinha que ser, de alguma forma, o pai que ela nunca teve. Era uma responsabilidade enorme, mas não havia alternativa. Não podia deixá-la enfrentar aquilo sozinha.

No dia seguinte, acordei cedo, como sempre, e enviei uma mensagem para Júlia. Era uma rotina nossa: eu lhe desejava bom dia, e ela respondia com mensagens ou áudios que, de alguma forma, tornavam meu dia melhor. Mas, dessa vez, a resposta que recebi foi um áudio dela chorando. Sua voz estava carregada de desespero enquanto me contava que sua mãe havia finalmente voltado para casa, mas não sozinha. Voltou machucada. Júlia relatou que seu pai, em um acesso de fúria, havia agredido sua mãe. E, quando Júlia tentou intervir, ele revidou. Ela me contou, entre soluços, que havia empurrado o pai, tentando proteger a mãe, mas ele a atacou, acertando-a com um soco e empurrando-a contra uma maçaneta quebrada. O impacto abriu um corte profundo em suas costas, e ela dizia, desesperada, que estava sangrando muito.

Eu tentava acalmá-la, mesmo sentindo um ódio crescente dentro de mim. Cada palavra dela parecia inflamar ainda mais minha indignação. Para mim, não havia nada mais desprezível no mundo do que alguém capaz de machucar uma criança inocente. Pessoas assim não merecem a luz do dia. Enquanto Júlia chorava, eu sentia um misto de impotência e revolta, mas me esforcei para manter a calma e ajudá-la a passar por aquele momento.

Júlia me contou que, após a briga, sua mãe, mesmo ferida, conseguiu levá-la ao hospital. Aquela situação foi um ponto de virada para sua mãe. Ela disse a Júlia que estava decidida a se divorciar, que não podia mais suportar aquele casamento. Mas havia um problema, o mesmo que prende tantas mulheres em relacionamentos abusivos: a dependência financeira. Ela não tinha condições de sair de casa, e isso a mantinha refém daquele homem. Elas dependiam dele para tudo, e sair dali parecia um sonho distante. Sua mãe revelou que estava juntando dinheiro aos poucos para tentar voltar para Natal, mas isso só seria possível no final do ano, pois estavam na metade do ano letivo, e Júlia não poderia abandonar os estudos.

Dias depois, enquanto conversávamos, Júlia me contou que sua mãe planejava sair novamente naquela noite. Ela estava aflita. Temia pela segurança da mãe e também pelo que poderia acontecer caso ficasse sozinha com o pai. De repente, no meio da conversa, Júlia parou de responder. Esperei alguns minutos, mas o silêncio persistiu. Comecei a enviar várias mensagens, tentando obter alguma resposta, mas nada. O desespero tomou conta de mim. Minha mente se encheu de cenários horríveis, e a única coisa que eu pude fazer foi rezar. Rezar para que Júlia estivesse bem, para que aquele homem não tivesse feito nada com ela. Ao mesmo tempo, uma raiva incontrolável queimava dentro de mim. Se algo acontecesse com Júlia, eu sabia que iria atrás dele. Não importava onde estivesse ou o que fosse necessário. Por ela, eu seria capaz de tudo.

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