Irmã de arriscar

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Já no meio da conversa, dedico-me a observar a garota que apesar de minha gêmea é bastante distinta em essência.

- Eu costumava afastar o pensamento de quem seria eu fora dessa cadeira e quais coisas poderia fazer. Mas, em algum momento, decidi ouvir os pensamentos e rebati com coisas boas sobre quem sou para além desse fato sobre mim. Não muda nenhuma das possibilidades, mas feliz e é bom que eu seja essa pessoa incrível. Não vale a pena continuar me afundando nessas possibilidades impossíveis pra mim. Todos os dias escolho focar em outras coisas mais importantes e realmente gratificantes.

Na última sessão, minha psicóloga tornou a dizer "Você precisa se arriscar."

Sobre variações do assunto arriscar, lembro imediatamente dos mais pobres, vulneráveis que sofrem o grande efeito das enchentes reais ou metafóricas. Alguém colocou tudo que tinha em um sonho humilde que agora está destruído. Ninguém, nem o governo vai trazer qualquer parte daquilo de volta. O governo não trará suas vidas e sonhos de volta. Principalmente, não é viável contar com isso.

Aquele pouco é muito para quem tem somente um quase nada. As pessoas privilegiadas do outro lado da mesa não são capazes de entender e por isso deveriam ter, pelo menos, empatia.

Penso nos direitos de muitas minorias e automaticamente ouço algum imbecil dizendo imbecilidades como "não concordo com isso blá blá" Os malditos falsos moralistas (expressão que se refere a uma atitude, comportamento ou pensamento que demonstra um apego falso a um princípio moral.) tentam se justificar. Entretanto, que tipo de pessoa empática e pró-vida deixa seus preconceitos serem maiores do que o respeito? Qual é o sentido de dizer coisas que matam? A solução para o massacre é que todos morram de uma vez e deixem de ser um "problema"?

"Tente me explicar a si mesmo e tente me explicar a sua religião também. Me mostre os seus malditos traumas e opressões, ou seus privilégios indignantes. Me mostre sua alma suja." É o que diz a música que tenho ouvido com muita frequência ultimamente. Durante toda a semana, essas palavras continuam pairando (Ação de emergir, de vir à tona) em tudo que faço, palavras que digo repetidamente, mesmo que sem ter estudado o real significado. É compreensível e também distante do meu domínio, assim como problemas sociais, apesar de eu mesma ser um "problema social" explícito. Minha pele.

Agora, começo a me culpar por me dar o passe livre de julgar outras pessoas quando não sou tão melhor. Não sou cura para quem quer que seja e meu defeito ainda é a fraqueza, visto que penso sem me dispor a algo, não ajudo em qualquer área, apenas penso, inutilmente penso sem ação, sem me arriscar.

- Obrigada por ser minha irmã. Você é incrível.

- Eu sei.

Alanny responde rápido.

Me julgo idiota por ser a pessoa pensando em tudo que meu egoísmo ignora, inclusive sobre aquela Maria.

Toda vez que o assunto me vem em mim, sinto vontade de perguntar "Como você se sente com relação a ela?" para qualquer uma das duas.

- Como você se sente em relação a nossa mãe?

Fico ali, entre o "nossa" e "mãe". Ninguém sabe que para mim minha mãe é mais como "aquela Maria". Não se trata de algo que me desperta o interesse de externalizar. Afinal, o que é que quero compartilhar e com quem?

- Ela tem uma personalidade terrível, difícil de conviver.

Alanny sorri com dentes tão grandes quanto os meus, todavia enfeitados por um metal prata inexistente em mim. Minha irmã é adepta a furos no corpo e certamente terá mais tatuagens do que as que já conseguiu concretizar sem avisar.

- Eu sei que você não se sente assim, mas pra mim ela foi uma boa mãe.

- Fico feliz.

- Sua felicidade contagia.

Quando éramos crianças, essa garota usando tranças no cabelo costumava ter problemas com a alimentação e precisou visitar muitos médicos para lidar com isso. Sempre que penso na minha irmã dou início ao egoísmo que logo me leva as dores que ela suportou consigo mesma, tantas coisas constantemente, coisas que eu nunca saberei como doem e se soubesse não aguentaria.

- Não sei no que você tanto pensa, mas não perca tempo comigo, deixe essa função pra minha namorada.

Meu sorriso não chega a ser metade do sorriso de uma pessoa realmente sorridente.

- Sorria! Por que ficar tão tensa o tempo inteiro? Não leve a vida tão a sério. Eu nasci sem poder andar e você enlouquece?

Assim como nosso pai, Alanny desgosta de manter conversas sérias, vai direto ao ponto e quando demonstra alguma emoção diferente de energia e dedicação é raramente e breve. Não tenho certeza se o motivo de se expressar assim é por ser cheia de emoções exageradas que exigem atitude ou se por ignorar o tamanho de suas dores. Pergunto-me se alguém é realmente capaz de ignorar o próprio pedido de socorro?

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