O sussuro da maré

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A brisa salgada e fresca do mar acaricia minhas bochechas, e posso ouvir o som reconfortante e familiar de um ukulelê ao longe.

Às vezes, por causa desse tipo de momento, sinto que vivo em um cenário de filme: Sargentinhos é uma pequena cidade turística separada do resto do estado pela Serra do Mar, e o tempo parece ter sido seduzido pela maresia. As lojas são as mesmas há mais de vinte anos, administradas pelas famílias, e todos se reconhecem nos bancos da missa de domingo na igreja Matriz. É impossível que um forasteiro não se destaque em meio aos cidadãos sargentinhos, e a história das gerações de Álvares, Camargos e Azevedos é a história desta cidade.   

E aqui estou eu, uma cidadã sargentinha como qualquer outra. Moro neste sobrado desde os meus primeiros passos, e não consigo imaginar uma vida em que eu não frequente a escola com os filhos das amigas da minha tia Catarina e divida minhas tardes entre o seu café — localizado no andar térreo de nossa casa — e caminhadas pelo Promontório do Ouriço ou pela praia Cristalina. Nossa rotina é regida pelas estações do ano, e, enquanto os meses de verão são dedicados aos turistas, os meses de inverno são meio solitários; o mar fica com um tom estranho que mistura verde, azul e muito cinza, e os moradores de Sargentinhos se reúnem nas casas dos vizinhos, dividindo panelas enormes de caldinho de siri e travessas cheias de peixe-mole, nossos pratos típicos.  

Mas, apesar de eu não conseguir imaginar outra vida, não é segredo para ninguém que sempre quis sair daqui. Não para sempre, porque talvez fosse insuportável lidar com tantas memórias perdidas — tem um ditado na cidade que diz que todo cidadão sargentinho já nasce com a alma velha e com cheiro de mar —, mas não seria nada mal rodar o mundo, como nesses filmes freedom style que adoram passar na nossa única sala de cinema. 

É por isso que enquanto estou aqui, nos fundos de casa — convenientemente virados para a praia e para as ilhas —, penso no meu melhor amigo. Quer dizer, não sei bem se posso chamá-lo assim. Lucas e eu fomos amigos de infância, assim como todos os meus colegas da turma 267 do Colégio Pescador Jerônimo Dias pelos meus quinze anos de vida. E vivemos o clichê mais perfeito de amizade que poderia existir: seus pais são amigos da minha tia, vivemos em casas vizinhas, dividimos castelos de areia e eu já vi o Lucas comer mais meleca de nariz do que seria considerado saudável. No começo do ano passado, porém, logo nos primeiros dias do ano, os pais de Lucas anunciaram para todos que iriam se mudar, temporariamente, para a cidade de Santa Rosa, o mais próximo de "cidade evoluída" que temos sem cinco horas de estrada até a capital. 

E essa mudança durou apenas um ano; mas você não sabe como um ano inteirinho pode ser significativo na vida de adolescentes? Como eu já disse, Sargentinhos é uma cidade um tanto quanto parada no tempo, e, para uma garota do século XXI, eu estava bem atrasada. Contando quatorze anos recém-feitos, eu mal tinha uma conta em cada rede social essencial para a comprovação da minha existência enquanto ser humano, e nunca precisei de nenhum tipo de comunicação à distância para falar com qualquer pessoa que fosse. Lucas criou várias contas para mim, e durante os primeiros meses do ano suas mensagens de menino novo e deslocado na escola nova foram muito frequentes. Eu respondi como pude, mas a cada vez sentia que meu melhor amigo ficava mais distante, oculto por uma porção de emojis impessoais e distraído por vários amigos novos. Não nos distanciamos formalmente, é claro, mas já não sou mais capaz de dizer qual é a música preferida do momento para Lucas, e muito menos seu reality show de culinária do mês, já que ele está sempre mudando e parou de me contar. 

Lucas conheceu um lugar novo, é verdade. Mas as suas raízes se desprenderam com muita força da areia de Sargentinhos, e seu retorno nesse início de janeiro me deixa com mais medo do que animação por finalmente vê-lo. Os dias passaram rápido desde o Ano Novo, e amanhã já é dia sete de janeiro — justamente o que eu mais temia e esperava durante o ano que passou. 

Todos os dias, antes de dormir, eu abria a janela do meu quarto e olhava fixamente para as venezianas de madeira do quarto de Lucas. Embora ele não estivesse ali, e muito menos nas minhas notificações de mensagem, conseguia imaginá-lo, sentado sobre a cama e assistindo Chef's Table na tela do computador, iluminado pela luz azulada. 

Hoje, porém, fecho os olhos, sentindo a brisa que vem do mar, e subo para o meu quarto sem fazer o mínimo esforço para ir até a janela e abri-la. 


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⏰ Última atualização: Nov 22, 2019 ⏰

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