O saqueador mal teve tempo de sentir a dor. O sangue virou pó, o coração engasgou, entupiu, morreu. A lança em sua mão caiu no chão de terra batido, os joelhos falharam, o homem desmoronou morto aos pés de Malaika sem nem entender porquê. Do lado oposto, agachada no canto do único cômodo da casa, sua irmã entendia bem. A expressão em seu rosto era uma mistura de pânico e compreensão.
Malaika virou-se para longe do olhar de julgamento, fingindo ser atraída pelo som dos gritos e do fogo queimado lá fora. Ali não era seguro. Nunca foi. Tão longe da capital, tão perto daquelas ruínas heréticas que manchavam o horizonte. Com a seca, vinham o desespero e os saqueadores.
Anana se levantou, puxando para perto de si o vestido colorido cujos padrões geométricos pareciam apagados na escuridão da noite. Ela se aproximou, os olhos nos da irmã, como se estudando-os. Segurou a barra do vestido para passar por cima do corpo. Tocou com a outra mão o rosto da irmã.
- Você foi abençoada pelo deus-vivo.
Malaika suspirou. Afastou-se da irmã, indo até a entrada da casa. Afastou a cortina apenas o suficiente para ver sem ser vista. O telhado de palha de duas casas próximas estavam em chamas. Pessoas corriam por toda a parte. Um homem gritava, tentando defender sua casa de três saqueadores que pareciam brincar com ele, cutucando-os com suas lanças. Malaika achava que era Faraji, o carpinteiro da vila. Malaika lembrava-se do dia em que chegaram à vila procurando um novo começo. Faraji foi o mais receptivo dos aldeões.
- Vamos, - disse Malaika, dando as costas para o confronto. - Precisamos sair daqui antes que outros venham atrás deste aí.
A ordem pareceu fazer Anana lembrar ter sido acordada com gritos na noite. Piscou os olhos, encarou o corpo, começou a procurar por suas coisas. Pegou um pano para fazer dele uma trouxa.
Malaika deteve-a pelo pulso.
- Não há tempo.
Puxou a irmã na direção da cortina, mas ela mesma voltou. Foi até onde dormia, no canto oposto ao forno de barro, e levantou o estrado. Em um buraco coberto por uma cumbuca invertida estava um pergaminho. Enfiou-o dentro do vestido, ajustou o nó do tecido, e foi atrás da irmã.
- É uma bênção.
O cheiro no ar era o mesmo dos dias de festival, quando um boi era morto em agradecimento ao deus-vivo e assado para toda a vila. Faraji não estava mais em canto algum, mas um dos homens que o atacara estava agora arrastando pessoas de outra casa para fora. Bênção para quem? As duas estavam vivas apenas porque Malaika esperava o momento certo para sair de casa e cumprir seu dever.
- Seu dom, ter surgido logo agora, neste momento de terror.
Malaika pensou no dia em que seu dom foi revelado de verdade, cinco anos antes, quando ela secou o riacho onde se banhava por puro acidente. Estava nervosa ao ver um grupo de meninos aparecer para espiá-la no mato. Os garotos saíram correndo. Foi quando Malaika percebeu que era melhor deixar sua aldeia natal para trás.
- É um sinal, - continuou Anana, ignorando a expressão no rosto da irmã. - O deus-vivo olha por nós.
Olha por nós de seu palácio sultuoso, cercado de soldados e muralhas altas, guardando seus jardins de frutas e hortaliças. Olha enquanto seus sacerdotes empanturram-se, ignorando o mundo além da capital.
Malaika não disse nada. Apenar agarrou o braço da irmã e a puxou na direção da estrada. Havia lá um mosteiro onde viajantes passavam a noite. Era provavelmente o lugar mais seguro naquelas condições. Anana havia visto uma caravana chegar pela manhã. Passara boa parte do dia tagarelando sobre os soldados exóticos que escoltavam a tropa de camelos pela savana de Myambe.
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Crônicas do Império de Diamante
Short StoryConheça o Império de Diamante: um reino eterno que conquistou e suprimiu várias culturas de Myambe, o continente original da Humanidade. Protegido por um exército com poderes incríveis, o Imperador governa com sabedoria e há quem diga que possa conc...