1: Desmanche do Desmanche

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Xerife Teasle: "Você está me dizendo que duzentos dos nossos homens contra o seu garoto é uma situação impossível para nós?"

Coronel Trautman: "Se você enviar tantos, apenas não se esqueça de uma coisa."

Xerife Teasle: "Do quê?"

Coronel Trautman: "Um bom suprimento de sacos para cadáveres."

Rambo: Programado para Matar

Chovia como se os deuses tivessem apertado a descarga sobre a metrópole.

As luzes das janelas de um único galpão cintilavam naquele quarteirão da Penha. O cair da água abafava o som das marretadas, do maçarico e do funk que vinha lá de dentro, onde meia dúzia de homens trabalhava em duas caminhonetes. Retiravam as peças mais valiosas antes de um deles passar com a empilhadeira que levaria as carcaças retorcidas como que em agonia para o terreno ao lado. E lá ficariam condenadas ao esquecimento junto das centenas de outras acumuladas ao longo dos anos.

As luzes do galpão se apagaram. A iluminação do maçarico ligado era a única defesa contra o breu, criando sombras de ângulos estranhos nos restos de automóveis. Sombras que escalavam as paredes como fantasmas.

- Tá na vez de quem ir ver? - perguntou um.

- Do Biscoito - respondeu outro.

Biscoito suspirou. Tinha a impressão de que sempre que chovia era a vez dele verificar o fusível na casinha do outro lado do terreno. Ele se encolheu no casaco, passou pelo vira-lata que dormia perto da saída e foi resignado enfrentar o temporal frio e inóspito daquela madrugada.

Os vestígios mal iluminados dos carros pareciam mirá-lo com olhares acusatórios, conforme corria pelo chão enlameado. Apesar de seus esforços para fechar a gola, a água fria teimava em penetrar por seu pescoço e escorrer por sua espinha. Ainda teve o azar de deixar a chave cair em uma poça quando chegou na porta da casinha. Biscoito se agachou xingando e tateou a lama em busca da chave. Um relâmpago acendeu a noite subitamente e Biscoito caiu de bunda, assustado com um vulto. Mas era apenas uma pilha de metal, a luz e o sono brincando com seus sentidos.

Primeiro riu do susto, mas logo continuou, encharcado e emputecido, a tatear pela chave. Mais um raio cortou o céu e lhe deu a impressão de ver os pés de outra silhueta humana, mas Biscoito não cessou sua busca. Não iria se assustar de novo com uma sombra de metal retorcido.

Só que dessa vez não era metal retorcido.

* * *

Às vezes, a luz voltava logo em seguida no desmanche, mas por via das dúvidas alguém sempre materializava um baralho nessas horas e a quadrilha se dividia em duplas na mesa perto da entrada, onde ainda havia uma lâmpada do gerador. Entretidos entre gritos de "truco!" e dois baseados girando na roda, nem se deram conta de que já fazia uns bons dez minutos que Biscoito tinha saído.

Até que o Biscoito - ou o trapo que restou dele - voltou aos berros conforme estilhaçou a janela superior do armazém e se estatelou achatando a mesa de jogo.

Por um instante, todos ficaram parados, incrédulos, ainda com as cartas nas mãos, mas logo se entreolharam e perceberam que não haviam sonhado que o Biscoito tinha estilhaçado, aos berros, a janela e achatado a mesa do jogo.

O vira-lata latiu pelo estardalhaço, mas logo se recolheu a outro canto para continuar com a soneca. Os homens sacaram um trinta e oito e facas, girando em torno deles mesmos, olhando para cima.

As Crônicas do CascavelOnde histórias criam vida. Descubra agora