2: Cocaína Flamejante

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Tenente Coronel Bill Kilgore: "Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã. Tem cheiro de... vitória."

Apocalypse Now

Crônicas do Cascavel, dia 26 de setembro.

Terceiro dia de tocaia. A mesma cena a noite toda, todas as noites. Homens, pouco mais do que garotos, conversam em um ponto pouco iluminado daquela viela nas bordas do Bixiga. Carros chegam, de modelos populares a importados, e param na rua com o motor ligado. Dez reais para um lado, pacotinho de pó branco para o outro. Um drive-thru da coca a dois quarteirões de uma delegacia.

O dedo coça no gatilho. Ele pede para que eu apague os desgraçados, o que eu poderia fazer com uns cinco ou seis tiros silenciados. Mas isso só traria satisfação imediata. Alguns dias depois haveria outros cinco ou seis pobres coitados para tomar a posição. A oferta de desesperados é farta na Grande Puta Cinza.

Eu preciso achar a fonte. Eles são cuidadosos, mas eu sou paciente. Uma cobra pode ficar imóvel por horas aguardando o momento certo de atacar.

* * *

Cascavel observava do alto do edifício o movimento dos traficantes na rua através da mira ótica do AGLC Imbel. Motörhead em seu fone de ouvido. Lá pela meia-noite, a movimentação mudou de dinâmica. Cascavel abaixou o volume de Ace of Spades que tocava em seu fone e sacou seu microfone a laser de construção caseira.

- ... que pegar mais - ouviu o meliante falando.

- Quanto?

- Traz uns cem.

- Falou.

Um deles começou a subir a rua, como uma ovelha que se desgarra da manada. Uma ovelha que não sabe que é observada por um lobo. O vigilante abriu um sorriso debaixo de sua máscara.

- A noite, às vezes, é generosa comigo - murmurou Cascavel.

Ele guardou o equipamento e o rifle no case de guitarra e o subiu nas costas. Desceu o edifício por uma escada externa de manutenção e saltou para o telhado das casas, acompanhando o movimento do homem pelo quarteirão. O bandido entrou num boteco e saiu de lá com outro sujeito. Carregavam dois capacetes.

Cascavel teve sorte, conversaram um pouco ainda do lado da moto antes de subir, o que deu tempo para que o vigilante sacasse o estilingue da perna e atirasse um localizador no escapamento da moto. Logo depois saíram, rua acima.

O vigilante pegou o celular e abriu o aplicativo de mapas. Lá estava a moto, indo para o outro lado do Bixiga.

- Boa ovelha...

Abaixou a máscara, virou o boné para frente e desceu por um beco até a rua. E vagou por elas, indistinto dos tantos músicos que tocam por alguns trocados nos bares da região, em direção ao ponto luminoso em seu mapa.

O Bixiga é um bairro extraoficial de São Paulo. Para o poder público ele simplesmente não existe, assim como não há Cracolândia e nunca houve Boca do Lixo na metrópole. O Bixiga caiu nas rachaduras da divisão de subprefeituras, retalhado ao longo das décadas por avenidas, tomado primeiro pelo jogo do bicho e depois pelas drogas. Cada rua do Bixiga parece ser um ecossistema não relacionado com o próximo. Há restaurantes italianos geridos pela mesma família há três gerações, barzinhos frequentados pelos filhos dos favorecidos, botecos que reviram o estômago até dos ratos, a alegria da Vai-Vai, a comunidade tradicional da Achiropita, teatros com espetáculos da moda e mendigos que erram desde a época do regime militar pelas ruas do bairro, como que em constante busca de uma vida que perderam um dia.

As Crônicas do CascavelOnde histórias criam vida. Descubra agora