Barry

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SOU UMA NARRADORA nada confiável.

Porque acrescento detalhes inventados a quase toda história que conto sobre minha mãe. Porque minha irmã afirma que todas as memórias que "compartilhamos" foram fabricadas por mim para impressionar as pessoas. Porque fico "doente" demais. Porque falo no mesmo tom grave meio "dããã" com todos os caras que conheço, exceto pelo tom adulto e evasivo que uso para imitar meu pai. Mas sobretudo porque em outra parte deste livro descrevo um encontro sexual com um universitário republicano bigodudo como a escolha angustiada porém educacional de uma novata no sexo quando, na verdade, senti que não havia escolha alguma.

Contei diferentes versões da história para mim mesma - algumas delas não saem da minha memória, embora a natureza dos eventos seja de que eles só acontecem uma única vez e de uma única maneira. No dia seguinte, todos os detalhes ainda estão frescos na memória (ou tão frescos como estaria qualquer ato cometido numa névoa de cerveja quente, comprimidos de ansiolítico e cocaína mal administrada). Em semanas, era uma lembrança da qual eu tentava fugir, como o momento em que fiz uma curva na capela do velório e vi meu avô deitado no caixão aberto, em seu uniforme azul da marinha.
A versão mais recente é que me lembro das partes que consigo lembrar. Acordo no meio do ato. Não lembro como começou e, quando me dou conta, estamos rolando pelo carpete, Barry e eu, sem uma geografia clara da cena. Na meia-luz empoeirada de um apartamento universitário, vejo um pênis pálido e flácido vindo na direção do meu rosto e sinto ar e lábios em lugares que não sabia que estavam expostos. O mantra que ouço várias vezes na minha cabeça, um tipo de mecanismo autocalmante, é: Isso é o que os adultos fazem.
Na minha vida, houve dois momentos em que me senti descolada, e ambos envolveram ser nova na escola. A primeira vez foi no sétimo ano, quando mudei de uma escola quacre em Manhattan para uma de artes no Brooklyn. Na escola quacre, eu tinha sido um pouco irritante, o equivalente a ser uma criança aspirante a cantora de musical. O único problema é que eu não sabia cantar, então apenas lia a biografia de Barbra Streisand e comia sanduíches de prosciutto, sozinha num canto da lanchonete, curtindo a solidão como uma divorciada num café de Roma. Na minha nova escola, eu era descolada. Tinha luzes no cabelo. Usava sapatos plataforma. Tinha uma jaqueta jeans com um bóton novo que dizia QUEM COLOCOU FOGO NA SUA CALCINHA? Garotos mandavam outros garotos virem me dizer que gostavam de mim. Falei para um certo Chase Dixon, um especialista em computador cujas mães eram lésbicas, que eu simplesmente não estava pronta para começar um relacionamento. As pessoas adoravam os meus poemas. Mas depois de um tempo o brilho da novidade esmaeceu, e voltei, mais uma vez, ao escalão das notas oito ou sete na ecologia escolar.
A segunda vez em que fui descolada foi quando mudei de universidade, fugindo de uma situação desastrosa numa faculdade a dez quarteirões da minha casa para um paraíso das artes nas plantações de milho de Ohio. Eu era novamente loura, novamente proprietária de uma jaqueta estilosa - um casaco de marinheiro elegante, listrado de verde e branco e feito no Japão - e recebi muita atenção daqueles que também pareciam gostar dos meus poemas.
Ao chegar, um dos meus primeiros atos de autodefinição foi trabalhar com o pessoal do The Grape, a publicação que se orgulhava mais do que deveria de ser o jornal alternativo numa universidade alternativa. Escrevi críticas de pornôs ("Annie anal e os maridos dispostos é esquisito porque a protagonista tem a língua presa"), denúncias sarcásticas da cultura Facebook ("o diário de festas de Stephan Markowitz tem o objetivo de fazer os calouros se sentirem sozinhos") e um relatório investigativo severo sobre a inundação do alojamento da Casa do Patrimônio Africano. Um dos editores do jornal, Mike, me impressionou de cara, um veterano com quase dois metros de altura que usava óculos à la Napoleon Dynamite, mas com a arrogância de um membro de fraternidade estudantil e o jeito sombrio de Ryan Gosling. Ele morava na Renson Cottage, uma casa vitoriana da faculdade, famosa por ter sido a residência de Liz Phair em seus tempos de estudante. No início da minha carreira no Grape, Mike e eu dançamos nos esfregando numa festa, o joelho dele bem enfiado entre as minhas pernas, fato do qual ele pareceu não se lembrar na reunião seguinte da equipe do jornal. Ele comandava o Grape com mão de ferro, abusando verbalmente dos subalternos a torto e direito, mas eu cumpria as minhas tarefas e ele muitas vezes me convidava para me sentar ao seu lado no refeitório, onde comia pratos abarrotados de macarrão oriental, hambúrgueres vegetarianos e todos os tipos de bolos bem secos com seu aliado judeu e baixinho, Goldblatt. Mike e eu travávamos uma guerra de palavras constante. Era flerte. Nós nos esforçávamos para impressionar um ao outro e ainda mais para fingir que não nos importávamos um com o outro.
- Acho que a monogamia nunca pode dar certo - disse ele, certo dia, enquanto comíamos batatas fritas no refeitório.
- Não estou nem aí. Não sou sua namorada - rebati. - Graças a Deus, querida.
Achei graça. Eu era muito mais do que uma namorada. Era uma repórter. Uma sedutora. Uma estudante do segundo ano.
Naquele inverno, fui para casa por um mês porque peguei mononucleose e, durante aquele tempo, Mike perguntava com frequência como eu estava, sob o pretexto de que ele estava "com dificuldades, sentindo falta da minha melhor repórter por aqui" e sendo aniquilado pelo nosso rival, The Oberlin Review. Na noite em que voltei, com as glândulas ainda inchadas, usei um vestido de casamento vintage para jantar com ele e Goldblatt no melhor restaurante da cidade. Mike sorriu para mim como se fôssemos um casal de verdade (um casal que levava um capanga judeu baixinho para cima e para baixo).
Algumas semanas depois, Mike veio até o meu quarto assistir a Sob o domínio do medo. Contei a ele o quanto eu tinha ficado perturbada pela representação da sexualidade feminina no filme, com uma mulher que odiava ser desejada e queria muito ser usada, e, então, ele deitou em mim e nos beijamos por quarenta minutos. O que aconteceu depois foi um caso tortuoso que resultou no seguinte:
Uma rodada e meia de relações sexuais
Um banho de chuveiro compartilhado (meu primeiro)
Cerca de sete poemas sofridos que descreviam a forma co​mo "nossas barrigas
batiam uma na outra naquela noite"
Um teste de gravidez totalmente desnecessário.

Não sou uma dessasOnde histórias criam vida. Descubra agora