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A verdade tem muitas cores, mas nenhuma a descreve tão bem quanto o cinza.

Este não é um conto de fadas com final feliz.

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Desde que se entendia por gente, Luminäe sabia que não era uma fada comum.

Ela nascera da magia imbuída no sorriso de um bebê, assim como todo espírito luminoso que encarnava neste mundo. No caso das fadas, as protetoras das crianças eram uma mescla de inocência e bondade materializadas em carne e osso. Os pares de asas as classificavam dentre os raros espécimes do mundo mágico capaz de voar. Seu tamanho diminuto as tornavam invisíveis aos mortais, como toda fada deveria ser permitindo-lhes esconder-se do mal natural que espreitava este mundo.

Dentre as fadas, Luminäe era a única que quase nunca sorria. E ao alcançar a idade adulta, dentre todas as cores que ela poderia escolher para confeccionar suas roupas, ela optara pelo tom comumente rejeitado por suas irmãs: cinza. Nem ofuscante como o branco, nem obscuro como o crepúsculo; uma cor intermediária, capaz de tornar-se mais clara ou mais escura dependendo da quantidade de luz que nela se despejasse.

Durante a infância, Luminäe demonstrara a alegria típica de uma fada. Seu fascínio por tudo que era novo ecoava os sentimentos de suas irmãs. E seu amor pela criação e sua rica diversidade lhe rendera seu nome: Luminäe, a luminosa, pois seu sorriso era o mais radiante de todos que as Fadas Superioras já viram em seus milênios de existência.

Mas desde que atingira seu primeiro centésimo de vida, a idade em que se entrava na vida adulta e se assumia as primeiras responsabilidades como guardiã das crianças, Luminäe passou a ser observada de perto devido à sua personalidade peculiar.

Seus gostos não eram os gostos das suas irmãs. Seus hábitos eram estranhos para uma fada. A estação preferida de suas irmãs era a primavera. Até a chegada do verão, Luminäe se recolhia durante o desabrochar das flores e se refugiava nos espaços ocos das árvores, esperando o outono chegar. Com suas folhas cor de fogo e os galhos quase secos, ela celebrava a sobriedade da estação, que demarcava o fim da alegria da juventude e o início da maturidade do espírito.

As fadas trajavam-se com tecidos multicoloridos, ostentando matizes que refletiam os tons do arco-íris, uma celebração da diversidade da vida. Luminäe enroscava uma simples echarpe vermelha ao redor do pescoço, a cor menos preferida de suas irmãs, para quebrar a monotonia do cinza e do marrom, as cores de seu sobretudo e de seu vestido. Vermelho, a cor do sangue que os homens derramavam em batalha, que as mães expeliam de seus corpos ao dar à luz, a cor que precedia a violência, a ira e a revolta; vermelho, a cor maldita, que prenunciava a morte; o fim da vida, o fim de tudo.

Luminäe logo se enjoava da companhia festiva e espontânea das amigas e encontrava uma maneira de se afastar. Em seu íntimo, ela julgava suas irmãs como ingênuas, com seu jeito irritante de rir das coisas mais insignificantes como se as conhecessem pela primeira vez. Certo, um dia ela também fora inocente. Mas não se podia permanecer uma criança para todo o sempre. Essa era a verdade que Luminäe bem conhecia, e que muito lhe angustiava, pois no mundo acima das nuvens, onde as fadas viviam, ela não tinha com quem compartilhá-la.

Reclusa, hermética, indecifrável. Não demorou muito tempo para Luminäe ganhar a alcunha de fada cinza de suas amigas, não somente pelos trajes que vestia, mas pela sua melancolia e introversão naturais.

Durante o cair da noite, os poucos espíritos de luz que espreitavam nos recônditos da floresta assistiam a fada cinza descer dos céus feito uma estrela cadente e repousar em uma árvore distante onde pudesse ficar com seus pensamentos. Nesses momentos solitários, muitas coisas passavam pela cabeça de Luminäe, e cada pensamento conduzia a perguntas sem resposta. Por que as fadas viviam para sempre e os humanos morriam passadas poucas décadas? Por que a magia havia sido separada do mundo dos mortais? Por que a eles era tão difícil conseguir qualquer coisa nesse mundo, enquanto que para uma fada, bastava acreditar que seu desejo se tornava realidade?

Uma vez, sua melhor amiga lhe perguntou no que tanto refletia. Pois Luminäe costumava manter-se calada a maior parte do tempo.

— Porque eu não tenho certeza de nada. E isso me deixa aflita. –ela respondeu em voz sincera- Diga-me, Myrna, você não estranha que nós sejamos tão diferentes dos mortais? Aqui no mundo acima das nuvens, tudo é perfeito. Temos tudo de que precisamos. A magia se garante de atender a todos os nossos desígnios. Mas lá embaixo, os homens se matam pela menor das necessidades. Basta um pequeno detalhe de suas vidas dar errado que eles se desesperam e se voltam uns contra os outros, feito animais!

— Esta é a ordem do mundo. Não entendo o que há de preocupante nisso. –ela respondeu com naturalidade.

— E por que a ordem tem de ser assim? Por que não é de outro jeito?

— E de que outro jeito seria?- ela indagou com igual indiferença.

Naquele momento, Luminäe sentiu sua garganta travar.

— Porque...porque...talvez não era para ser assim. –foi tudo que ela conseguiu responder.

— Mas do que você está falando? Do que você tanto duvida? Ora, vamos, Luminäe. Pare de perder tempo pensando nestas coisas. Celebre sua existência e a beleza da vida. Não desperdice seus pensamentos com as atribulações daquele mundo transitório.

Mas para onde quer que olhasse, Luminäe via o contrário da beleza. Imperfeição, caos, injustiça e corrupção manchavam o quadro da realidade. Abaixo das nuvens, o mundo estava em um perpétuo desequilíbrio.

Ela se castigou por não conseguir expressar o que seu coração sentia e passou os próximos dias tentando colocar em palavras tudo que via de errado na ordem natural das coisas.

...

Muitas vezes a Grande Fada ordenava a Luminäe que cumprisse determinada tarefa e a aprendiza lhe fazia perguntas incômodas, querendo saber o por que, quem, onde e como sua missão afetaria os mortais. E muito embora a Grande Fada lhe explicasse com toda paciência do mundo, ainda assim a Luminäe lhe parecia que as respostas não eram convincentes, como se a fada cinza desconfiasse de que lhe escondiam uma informação vital de propósito.

— Não cabe a uma fada questionar as ordens de suas superioras. – disse a Grande Fada com gravidade - Tudo que fazemos é por uma razão. Um dia, se você for considerada elegível para comandar outras fadas, então a você serão revelados meus motivos.

A chance de ser promovida pareceu acender uma faísca em seu espírito e Luminäe prosseguiu viagem sem pronunciar mais uma única palavra. Pois a Grande Fada via potencial em Luminäe. Se ao menos ela conseguisse desvendar o segredo que havia convertido uma fada tão luminosa, cheia de promessa em um espírito fechado e distante.

Enquanto cumpria suas ordens, os pensamentos da fada cinza sempre se voltavam para os mortais e sua breve existência, permeada de pequenas alegrias entremeadas com longos períodos de sofrimento...

Quantas vezes a Grande Fada lhe avisou que não interferisse nos assuntos dos mortais? O mundo deles não é como o nosso, ela dizia.

— Nossa magia pertence ao nosso reino, e os poucos que tentam invocá-la, contrariando as leis da natureza acabam tendo um final trágico.

Mas Luminäe se cansava das mesmas explicações batidas, que no fundo não esclareciam nada, apenas cerceavam seu pensamento. Pois quanto mais ela viajava para o mundo dos mortais, mais a fada cinza se convencia de que a certeza que ela e suas irmãs detinham sobre como o mundo era feito e as verdades que elas cresceram ouvindo das Fadas Superiores traduzia muito pouco a respeito do que suas viagens à superfície do mundo lhe diziam.

E foi durante uma de suas buscas por um lugar isolado que ela testemunhou uma das transitoriedades do mundo mortal e que terminou por mudar seu destino.


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