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Do alto das nuvens, enquanto retornava ao reino das fadas ao voltar das Terras Ermas, Luminäe avistou uma estrela cadente descer à superfície, tão minúscula que só poderia ser uma de suas irmãs. A não ser que seus sentidos lhe enganassem, o diminuto astro possuía um distinto brilho dourado, como só poderia haver um no mundo...

Decidida a solucionar aquele pequeno mistério, a fada alterou seu plano de voo e deixou-se planar até ficar embaixo das nuvens, rumando em seguida numa viagem ao mundo mortal. E com isso, violou a primeira regra dourada do código das fadas: jamais visitar outros planos sem ordem direta da Grande Fada.

Escondida no interior de um tronco, Luminäe espionou um pedaço do diálogo entre a fada e o que ela reconheceu pela voz cansada e o timbre grave como sendo um homem já na meia idade, talvez um dos camponeses, que envelheciam mais cedo devido a uma vida de incessantes trabalhos braçais.

— Bem sabes que não posso fazer mais do que convencer o duque a adiar a idade de recrutamento. Sinto muito; deves se preparar para a hipótese de seu filho ser obrigado a combater na guerra.

Luminäe observou a Grande Fada se distanciar e deixar o homem para trás, que lutava para não chorar, apoiado em seu cajado. A visão daquela figura solitária aos prantos, arfando e soluçando na vastidão da noite lhe causou uma pontada de dor no coração. Por um instante, à fada pareceu que a Grande Fada havia sido de uma indiferença cruel com relação ao problema do homem.

Luminäe se aproximou daquele retrato do abandono e revelou sua presença. O homem reagiu esperançoso, pensando que a Grande Fada havia retornado, mas o brilho de seus olhos diminuiu quando ela revelou ser outra fada.

Ao terminar de contá-la de sua miséria, o homem implorou que ela o ajudasse. Luminäe prometeu retornar dentro de dois dias, quando a Grande Fada haveria conversado com o recrutador do duque.

Eis que no prazo determinado ela obteve sua resposta e assistiu o homem sucumbir a uma tristeza inconsolável enquanto despedia-se do filho no último dia em que passariam juntos.

...

Nos dias que se seguiram, a fada sugeriu um plano.

As crianças eram mantidas em um acampamento militar, não muito longe do vilarejo. Se os pais partissem de tarde, alcançariam o local de madrugada, quando os soldados estariam dormindo. Com um pouco de magia do sono, ela neutralizaria aqueles que mantinham vigilância e as crianças seriam libertadas.

Um grupo de homens e mulheres reuniu toda a coragem que possuía e pelas trilhas da floresta eles seguiram, deixando-se guiar pelo pequeno ponto de luz. Como previsto, havia uma vigília composta somente de quatro soldados nas altas horas da madrugada. Um por um, Luminäe depositou seu pó do sono na fronte dos soldados insuspeitos, fazendo-os sucumbir a um doce sono. As crianças foram localizadas, mas quis o destino que um destacamento do exército visitasse o acampamento naquela mesma hora.

Ao se deparar com o crime em andamento, o general ordenou a prisão imediata dos camponeses. Impotentes contra o representante do duque, eles se deixaram capturar e foram amontoados em jaulas. Seus olhares acuados se moveram em direção à fada, que assistia com horror a partida das carroças, conduzindo os inocentes à prisão.

...

Procurando reparar o dano que causou, a fada não desistiu. Luminäe abrigou-se sob o manto de invisibilidade, conferido a toda fada desde seu nascimento e procedeu para as catacumbas, onde os camponeses eram detidos. Muitos recobraram a esperança ao ver que ela não os havia abandonado. Mas alguns reagiram com amargura à sua chegada, reclamando que fora a fada quem lhes condenara a um destino pior.

O homem a quem ela havia ajudado lhe perguntou sobre o destino de seu filho. Relutante, ela confessou que as crianças foram transferidas para um segundo acampamento, próximo da frente de batalha. O homem caiu em desespero novamente, lamentando-se de não poder trocar a própria vida pela do menino.

Seu pedido provocou uma segunda pontada de dor em seu coração. Mas o que uma simples fada poderia fazer? Mesmo sua magia era limitada...

Eis que a solução lhe sobreveio. Contudo, o preço do uso de sua magia teria consequências imprevistas. Se os camponeses traíssem sua confiança, o episódio teria uma conclusão desastrosa.

O pranto do homem e seu desejo de se sacrificar pelo bem estar do filho de peito aberto pesaram em sua consciência e Luminäe arriscou-se a libertar aqueles homens e mulheres, conferindo-lhes uma segunda chance para salvar seus filhos. E através de seus atos, ela violou a segunda regra dourada do código das fadas: jamais interferir nos assuntos dos mortais sem autorização das Fadas Superioras.

Luminäe enfeitiçou os guardas no caminho e conduziu os camponeses à sala das armas, onde eles trajaram armaduras e muniram-se de espadas, lanças arcos e aljavas. A seguir, eles foram levados aos estábulos, onde mataram os poucos guardas que estavam de vigia. Naquela mesma noite eles partiram para o novo acampamento, na esperança de impedir o pior de acontecer.

...

Ao chegar no acampamento, eles descobriram que as tropas já haviam marchado. Luminäe utilizou-se de sua visão superior e localizou seu paradeiro. Para seu medo, a primeira batalha já havia sido travada.

O camponês a quem ela havia se afeiçoado ainda a incitou a procurar pelas crianças. Elas estavam bem? Onde o duque as havia escondido? Luminäe fez de novo uso de seus poderes e desejou naquele momento nunca ter sido agraciada com o dom da visão.

Dezenas de cadáveres diminutos se amontoavam com o de homens adultos. A visão macabra se estendia pelas planícies sem fim, com os cadáveres misturando-se ao barro da terra e ao sangue que corria pelos sulcos.

Os camponeses, revoltados com a indiferença do duque às vidas de seus filhos, se rebelaram e voltaram suas armas contra ele numa tentativa de assassiná-lo. O bando cavalgou até a fronteira, decidido a confrontar o nobre.

Como os assuntos dos mortais nunca passavam despercebidos pelo mundo espiritual, as Fadas Superioras vasculharam a superfície atrás de Luminäe. Eis que a Grande Fada e mais duas irmãs desceram ao mundo e interceptaram o grupo armado minutos antes de um massacre ter início.

A Grande Fada foi até os camponeses, tentando convencê-los a buscar uma solução pacífica. Ela exigiu de Luminäe que a ajudasse a falar com eles, que os despertasse de seu estado de ira. Mas a fada achava isso de uma hipocrisia sem tamanho que se recusou a colaborar. Sob o olhar incrédulo de suas irmãs, ela se afastou e planou acima das cabeças dos homens e mulheres e despejou o restante de sua magia sobre suas figuras. Agora, eles teriam uma maior chance na batalha.

E com a ação quer seria sua última antes de suas irmãs a encontrarem e a impedirem de realizar seu sacrifício, ela violou a terceira regra dourada do código das fadas: jamais subverter a magia para dar poder a um mortal.

O que se seguiu foi um banho de sangue sem proporções. A vitória dos camponeses parecia possível minutos após o confronto começar. Porém, nenhum bando armado se comparava ao preparo de um exército treinado. Apesar de correr pelo campo, piscando pelo ar como um vagalume veloz, Luminäe era incapaz de curar todos os camponeses por conta própria. Aqueles que caíam não voltavam a se levantar. E os que resistiram até os instantes finais não aguentaram e terminaram se entregando ao destino inevitável.

O camponês de meia idade que fora o primeiro a falar com ela lhe agradeceu por tudo que a fada fez e lhe deu um sorriso sincero antes de dar seu último suspiro.

O duque deu as costas ao campo encharcado de sangue e cavalgou para longe. Na mesma hora, as fadas voltaram sua atenção para Luminäe, que chorava perante a figura inerte do falecido.

O olhar de decepção da Grande Fada foi respondido por ela com um de indignação. Como poderia a Grande Fada nada ter feito pelo camponês quando ele a procurou? Mereciam aqueles infelizes assistirem seus filhos morrerem pela ambição de um homem igual a eles em carne e espírito? Mas a vergonha se seguiu e Luminäe baixou o olhar, temendo em seu íntimo ter se condenado com seus atos.

A fada se deixou conduzir de volta ao mundo acima das nuvens, ciente de que sua pequena aventura violara os três preceitos sagrados da ordem das fadas. Mas o maior crime de Luminäe ainda haveria de ser julgado.

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CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora