IX

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Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das salas, sua honestidade havia tomado essa têmpera flexível de cera que se molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da ambição.

Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança; mas professava a moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente em nossa sociedade.

Segundo essa doutrina, tudo é permitido em matéria de amor; e o interesse próprio tem plena liberdade, desde que transija com a lei e evite o escândalo.

No dia seguinte à visita de Lemos, logo pela manhã, D. Camila procurou um pretexto para ir à alcova do filho.

- Venho falar-te de um negócio de família, Fernandinho. Há um moço, aqui mesmo desta rua, que tem paixão pela Nicota. Está começando sua vida; mas já é dono de uma lojinha. Não quis decidir nada antes de tua chegada.

D. Camila contou então ao filho os pormenores do inocente namoro; Fernando concordou com prazer no casamento.

- Já era tempo, disse a boa senhora suspirando. Estava com tanto medo que a Nicota também fosse ficando para o canto, como minha pobre Mariquinhas!

- Coitada! Mas eu ainda tenho esperança de arranjar-lhe um bom partido, minha mãe.

- Deus te ouça. Ah! ia-me esquecendo. Então há de ser preciso tirar algum dinheiro da Caixa Econômica por conta do que ela tem para cuidar do enxoval.

- Já?... O moço ainda não a pediu.

- Só espera licença de Nicota, e ela não quis dar, sem primeiro saber se era de teu gosto e meu. Hoje mesmo...

- Está bem. Logo que eu possa, irei tirar o dinheiro; mas se precisa já de algum, tenho aqui.

- Não; melhor é comprar tudo de uma vez.

Fernando saiu contrariado. Com a vida que tinha, avultava sua despesa. O dinheiro que recebia mensalmente gastava-o com o hotel, o teatro, a galanteria, o jogo, as gorjetas, e mil outras verbas próprias de rapaz que luxa. No fim do ano, quando chegava a ocasião de saldar a conta do alfaiate, sapateiro, perfumista e da cocheira; não havia sobras.

Recorreu ao dinheiro da Caixa Econômica; e não teve escrúpulo de o fazer, e desde que pontualmente continuou a entregar à mãe a mesada de 150$000, esperando uma aragem da fortuna para restituir ao pecúlio o que desfalcara. Mas em vez da restituição, foi entrando por ele de modo que muito havia se esgotara.

Onde pois ia ele buscar o dinheiro que a mãe lhe pedira para o enxoval; e mais tarde o resto do quinhão da Nicota?

Assinou Fernando o ponto na repartição, e como de costume, saiu para almoçar; depois do que dirigiu-se à casa do correspondente a quem ele incumbira de na sua ausência pagar a mensalidade a D. Camila, e enviar-lhe algumas encomendas.

Contava com um saldo das remessas que havia feito de Pernambuco, e dos atrasados que deixara a cobrar. Esbarrou-se porém com um alcance superior a dois contos de réis; ao qual o correspondente começava a contar um juro de 12%. Seixas compreendeu a eloqüência dessa taxa, que significava uma intimação de imediato pagamento.

Ao escurecer, tornando a casa para trajar-se pois tinha de ir a uma partida, achou três cartas, que haviam trazido em sua ausência.

Uma era do Amaral. Enchia duas laudas; dizia muito, mas nada concluía; verdadeiro logogrifo epistolar, cuja decifração o autor deixava à perspicácia do Seixas. Em suma o pai de Adelaide escrevera uma folha de papel para preparar o pretendente a um próximo arrependimento da promessa.

Quem estivesse traquejado no trato do Lemos, conheceria naquela prosa o seu estilo, pintalegrete, como o seu físico.

As duas outras cartas eram simplesmente umas contas avulsas, mas não insignificantes, que Seixas deixara ao partir para Pernambuco, e de que já não tinha a menor idéia. Elas se faziam lembrar com o laconismo brutal desta verba: - Importância de sua conta entregue o ano passado - Rs. etc.

Senhora - José de AlencarOnde histórias criam vida. Descubra agora