A primeira semana no hospício cinza (também banalmente apelidado de Saint Mary High School) tinha terminado. E a informação que consegui retirar daqueles 4 dias estava toda por analisar.
Descobri que umas das raparigas da minha turma, mora umas duas ruas abaixo da minha, e por isso encontramos-nos na mesma paragem de autocarro todas as manhãs. Lembro-me perfeitamente de a ver na sala 128, junto com uma outra rapariga. Ela era o ideal de beleza que fazia roer inveja a qualquer um. Uma beleza tão característica que me fazia prender os olhos nela. Tinha cabelos loiros compridos e ondulados, olhos verdes claros (que insistia em discutir se ousassem dizer que eram azuis) e um estilo de menininha com cara de quem sabe o que fazia. Tive a oportunidade de falar com ela umas duas vezes na escola, e os habituais cumprimentos matutinos quando nos cruzávamos na paragem do autocarro. A primeira vez que me lembro de ouvir a voz dela, foi na primeira aula de Filosofia. A professora, a mais jovem delas todas e sem dúvida a mais cativante, chamou por ela e assim ela falou. No momento em que a ouvi falar, dispersei-me. Podia jurar que nunca tivera ouvido uma voz como aquela, de uma raridade tão extrema que me fez olhar para trás num reflexo rápido, onde arregalei os olhos e me prendi nos dela. Era um timbre suave e meigo, mas tinha tudo menos a voz que eu esperava. Era uma voz mais grave do que o comum, o que me espantou e me fez questionar se realmente era possível estar-se apaixonada por uma voz. Tinha a certeza, com todas as palavras que ouvia dela, que ela era uma rapariga que sabia o que fazia. O nome dela era Ashley, um nome tão banal naquela escola, mas ela era sem dúvida, a Ashley mais incomum do Inferno Cinza.
Os meus intervalos eram agora passados juntos da Megan, a rapariga que me confrontou na apresentação. Confirmava-se também que a Megan era contagiante e dinâmica de uma forma que nem ela própria tinha perceção de tal. Eu brincava muito com o facto de ela ser assim e eu ser exatamente o oposto. Eu era calada e a Megan puxava por mim. Fazia-me sentir confortável e segura, e conclui logo assim a sua personalidade. Ela precisava de atenção, ela gritava em silêncio por ela, ela precisava do conforto de um abraço e de quem a escuta-se. Ela confessou-me várias situações do passado dela logo aí, não tinha certeza se ela era assim, desesperada por confessar-se a quem lhe demonstra-se abrigo, ou se ela apenas confiava em mim. E eu estava habituada a tal, a que as pessoas confiassem em mim, e talvez a Megan sentisse isso. Ela tinha reprovado no 8º ano e por isso só agora entrou no secundário. Pelo que sei, ela tinha passado por uma fase má, envolvendo o divórcio dos pais, inseguranças e medos, e um forte desejo de se tentar encontrar, fazendo-a desviar para maus caminhos. Ela contou-me que foi com 14 anos que começou a experimentar drogas. Começou pelas bases da nicotina e do álcool, o que a fizeram sentir-se mais ela própria do que alguma vez se sentira. E isso foi uma porta aberta para as drogas mais pesadas, que se não tivessem sido paradas a tempo, provavelmente fariam com que a Megan não tivesse oportunidade para estar ali a confessar-me o seu passado negro. Megan era problemática, não só superficialmente, por ela abundava uma grande obscuridade, mas mais do que isso, medo. Mas não era tudo cinza nela. Megan era a rapariga mais doce que eu já tivera conhecido. E talvez por ela ter sido tão magoada no passado, a fez tornar-se na jovem que ela é. Megan tinha a ambição de ser escritora, e livros eram a sua paixão. Foi aí que a nossa amizade nasceu, dos livros.
Para minha agonia e desespero, sendo o meu nome Luna, fez com que o meu número da turma fosse o 14 e automaticamente o meu lugar encontrava-se na segunda filha, da segunda coluna da sala. Atrás de mim estavam dois rapazes, Ethan e Ross, só os tinha decorado pela quantidade de vezes que os professores os chamavam à atenção pelo barulho. Ethan era desconcentrado e com um ar de convencido que nem lhe pertencia. Ross era o mais tímido mas o mais simpático. Demorei pouco a simpatizar com eles. Eles já andavam naquela escola há 5 anos e entenderam logo que ser caloira não era fácil, no entanto, o Ross era o rapaz com quem mais me identificava. Ele era querido e tinha um humor cativante, tinha uma maturidade peculiar e um sorriso envergonhado que me deixava ainda mais envergonhada também. Ele fez questão de me mostrar todo o recinto escolar no segundo dia, e eu aceitei. Tivemos duas conversas mais longas essa semana, e pude conhecer finalmente uma pessoa tão tímida como eu. Na verdade, e pelo feedback que recebia constantemente das pessoas, ninguém me achava tímida. A Megan tinha sido a primeira a dizer que me achava uma rapariga interessante, a Ashley dizia-me que eu tinha uma maturidade acima de qualquer um ali dentro, e o resto da turma ia utilizando adjetivos como "espontânea" "madura" e aparentemente elogiavam o meu rabo em segredo também. Eu corei quando soube disso. Não era uma turma má, os professores mostraram-se 8 ou 80, ou demasiado desleixados, ou demasiado exigentes. O que falhava era o horário, que me fazia concluir que este sem dúvida, não seria o ano em que as minhas tão constantes olheiras iriam desaparecer.
Tinha chegado o fim-de-semana e eu podia finalmente descansar. Ou pelo menos achava que sim.
"Saí da cama e ajuda-me a arrumar a casa" berrava a minha irmã enquanto me tentava tirar os cobertores.
"Nem ao fim-de-semana" murmurei entre os dentes. Peguei no telemóvel para ver as horas e o relógio marcava as 10h30 da manhã
"Não pode ser" murmurei "Tu não me acordas-te às dez da manhã de um sábado para limpar a casa pois não?" Berrei, ainda rouca e sonolenta, com o barulho do aspirador no fundo mal se ouvia a minha voz.
"E já devias de estar a pé" "Faz mas é a cama e ajuda-me"
O terror de ter uma irmã mais velha era confirmado. O nome dela era Mia, tinha 20 anos e ainda vivia em casa dos meus pais, comigo. Ela trabalhava numa loja no centro da cidade e ganhava o suficiente para poder ser uma mulher independente. No entanto, ela não o era. Mais uma vez, como todas as pessoas que aparecem na minha vida, ela era o meu contraste. Eu possuía uma grande autonomia que sempre os intimidou. Sempre tive um desejo avassalador de me tornar independente, tudo com o meu esforço, já a minha irmã, sempre gostou de viver debaixo dos braços dos meus pais. Ela sempre foi muito ligada à família e eu não. Talvez porque sempre tive noção do que se passava dentro destas quatro paredes, bom ou mau. E o mau esmagava absurdamente o bom. Já a Mia preferia viver no faz de conta, o que me irritava profundamente, mas o que podia eu fazer.
Acabei por arrumar a parte que me coube a mim da casa antes dela, e fui para o banho. Entretanto a minha mãe chegou do trabalho e fez o almoço enquanto a Mia acabava de limpar. Passei o resto do dia deitada na cama, agarrada aos meus pensamentos que me inquietavam. Mais um dia e voltava para a escola, como iria ser?
O meu pai chegou por volta das oito e meia para jantar. Só o vejo umas horas por semana, mas já é o suficiente para não o querer ver mais. Eu e ele nunca tivemos uma boa relação, mas para ser sincera, com quem já tivera eu alguma vez uma boa relação?
"Olha bem para ti, Luna" uma voz na minha cabeça ria-se ironicamente enquanto refletia sobre o assunto. Eu realmente sou perita em estragar tudo o que toco.
Revirei os olhos para mim mesma e respirei fundo.
Quando dei por mim a semana já tinha começado de novo e o cansaço do meu corpo acumulava-se. Saí apressadamente da casa para não perder o autocarro, e encontrei a Ashley na paragem. Ela sorria-me ao longe e eu aproximei-me para a cumprimentar. Ela era realmente bonita, sem sequer se esforçar, sem sequer se importar se as suas camisas estão desalinhadas ou o seu cabelo desarrumado (isto porque pelo reparei, a Ashley tinha uma paixão muito forte por camisas).
"Mais um dia, não é?" ela disse, calmamente, enquanto entrava-mos no autocarro. Eu sorri timidamente e franzi o sobrolho em resposta à retórica dela."O que estás a achar da turma?" Voltou ela a perguntar, à espera de uma resposta verbal agora.
"Parecem...porreiros, são simpáticos sim, e tu?" eu gaguejei um pouco enquanto lhe perguntava.
"Eu estou a gostar, acho que nos vamos dar bem" Fixei nela sem ela se aperceber e sorri. Ela era tão serena, como não me sentir bem com ela?
Mais umas quantas aulas passaram, mais uns dias, e quando dei por mim, era sexta-feira novamente. A aula de História A só começava às duas e eu tinha chegado meia hora antes. Como sempre, ou sou a última a chegar, ou chego antes do portão sequer abrir.Sentei-me num dos bancos do jardim da escola, de fones nos ouvidos e olhos fechados. Não passava ninguém, embora fosse uma escola sobre lotada. Enquanto pensava naquele sossego que a vida me proporcionava senti alguém a aproximar-se de mim. Abri os olhos e vi o Ross a sorrir-me enquanto caminhava na minha direção.
"Posso?" Ele perguntava enquanto me sorria, apontando para o banco.
Se eu tivesse mais confiança com ele, provavelmente brincava com a situação e dizia que não, mas eu ainda não sabia como as pessoas lidavam com uma rapariga que é 90% de sarcasmo, portanto resolvi sorrir de volta e dizer-lhe que sim.
Tirei os fones dos ouvidos e guardei-os no bolso das calças. Conversamos durante meia hora sobre tudo o que nos vinha à cabeça. Ele contou-me histórias vergonhosas que já tivera passado ao longo dos 5 anos em que frequentava aquela escola, contou-me também que sempre teve muitos complexos com o peso dele, daí frequentar também uma equipa de futebol da escola. Eu confessei-lhes coisas banais sobre mim. Eu não sou de confiar nas pessoas, isso aborrece-me, talvez quem sabe, seria interessante contar uma ou duas coisas sobre mim ou sentir que poderia desabafar com alguém, mas nunca o fizera antes, não era tão cedo que teria coragem para tal. Assim sendo resolvi falar-lhe das bandas que ouvia e do que estava a achar da escola até então. Tínhamos opiniões comuns sobre diversos assuntos, e ele era realmente interessante. E o sorriso dele fazia-me querer contar mais situações parvas a que me sujeitei para poder continuar a vê-lo sorrir para mim. Estávamos os dois ali sozinhos. Já não me sentia num hospício, sentia-me bem com ele. Ele sabia fazer-me sorrir e oh, é tão bom quando o conseguem.A campainha tocou e dirigimos-nos para a sala. Ao fim de mais duas aulas monótonas despedi-me novamente da escola com muito entusiasmo por já ser fim-de-semana e a semana ter corrido tão bem. O Ross chamou-me enquanto me dirigia com a Ashley e a Megan até à paragem
"Luna!" Ele apressou-se até mim e eu parei. "Deixas-te cair isto" Ele entregou-me os meus fones para a mão e eu sorri timidamente enquanto o encarava. " E esqueces-te de te despedir de mim" Ele franziu o sobrolho e olhou-me com graça. Mordi o lábio e agradeci-lhe consequentemente, depois aproximei-me da face dele e beijei-lhe a cara. "Bom fim-de-semana Ross, e obrigada" "Até para a semana, Luna".
VOCÊ ESTÁ LENDO
Tentaremos não nos esquecer
Roman pour AdolescentsChamava-se Saint Mary High School, mas era conhecido por hospício. Chamavam-lhes estudantes, mas eles eram muito mais do que isso. Chamavam-me Luna, mas eles não sabiam quem eu era.