Capítulo 2

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Mensagem

Rita: Kahlil, a entrevista vai ser na sala 3. Lembre-se do que conversamos. E, pelo amor de Deus, seja agradável. Boa sorte.

Puta merda. Essa é a primeira palavra que me vem à mente. Eu havia me esquecido completamente da entrevista com a jornalista da revista Clever. Sinto meu estômago queimar, retiro uma caneta do bolso direito e começo apertá-la incessantemente. O tic-tac do objeto ecoa pelos corredores, enquanto me movo em direção ao banheiro. Encaro o espelho. Respiro fundo várias vezes e repasso em silêncio o diálogo com minha assessora, Rita.

Apesar do meu cabelo bater um pouco abaixo do pescoço, prendo-o para trás. Deixo algumas mexas soltas, desordenadas. Lavo meu rosto na tentativa de esfriar os ânimos. Odeio ter que lidar com jornalistas. Irônico, porque sou uma. E talvez esse seja o problema.

Depois do meu ritual, vou em direção a sala 3. A porta já está aberta e de longe enxergo uma silhueta sentada em uma mesa circular de vidro. Observo alguns papéis espalhados e um bloquinho de anotações em que uma moça de aparentemente 24 anos está absurdamente concentrada. Deve estar revisando as perguntas, aposto. Ao julgar pelo seu olhar compenetrado, vai ser uma longa entrevista.

- Prazer, Agatha - digo, estendendo a mão e abrindo um breve sorriso. - Sou a Kahlil.

- Prazer, Kahlil. Se me permitir dizer, é uma honra te conhecer - Agatha diz, retribuindo o aperto de mão.

Que gracinha, só que não. Com quem eu falo ou deixo de falar é trabalho da Rita. Às vezes, tenho o privilégio de opinar. Hoje, não foi o caso.

- Obrigada, eu acho... - digo, meio sem jeito, enquanto me acomodo na cadeira, ficando de frente para Agatha.

Ao encará-la, percebo a mistura mística que habita seus olhos. É uma mescla de castanho com amarelo. O cabelo preto com mechas brancas está contido em um coque perfeitamente ordenado - bem diferente do meu, confesso. Odeio ordem, regras. Mas o penteado lhe cai bem. Ela sustenta a pose de jornalista durona. Porém, detecto um leve contraste. Aquele rosto, que me encara de forma ansiosa, parece esculpido: nariz fino, pele clara e bem cuidada. Típico de 99% das pessoas superficiais. E eu? Bom... não suporto padrões.

- Podemos começar? - Diz Agatha, sem rodeios.

- Sim, claro. - Falo, cruzando as pernas.

- Espero que não se ofenda com a pergunta invasiva, Kahlil - aperto meu joelho ao processar essas palavras. - O que você tem a dizer sobre sua relação com a mídia?

- Acredito - digo, de forma seca - que tudo depende do ponto de vista. Por exemplo, eu sou um amor com meus fãs e sinto uma imensa gratidão por eles. Com a imprensa é o oposto. Já se perguntou o por que?

- Tenho teorias, mas prefiro ouvir sua opinião. - Agatha rebate, colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha.

Me aproximo calmamente do seu rosto. Nossos olhos se conectam. Não há possibilidade de fuga.

- Porque... - faço uma pausa exagerada - vocês são tendenciosos. Aposto, Agatha, que nesse bloquinho há milhares de perguntas criativas e bem elaboradas, das quais você amaria fazer a uma autora de best-seller. No entanto, aqui está você me fazendo perguntas capciosas para manchete do dia.

Por um momento o silêncio se instala na sala. Observo ela retirar um aparelho do bolso. Pelo formato, julgo ser um celular. O objeto, no entanto, é mantido por baixo da mesa. Sem vacilar, ela mantém os olhos fixos nos meus. A cor peculiar daquele globo me envolve, mas não engana.

- Kahlil... Isso é o que as pessoas desejam saber - Agatha fala, cautelosamente. - Você deveria entender mais do que ninguém. Antes de ser escritora, você é jornalista. É meu direito ser a voz do público - finaliza, vacilando nas últimas palavras.

Suspiro fundo. Olho para o conteúdo escondido na sua mão.

- Existe uma diferença, Agatha, entre o interesse público e o interesse do público. Pode parecer sútil, mas é o que difere um jornalista de um macaco pago. Aliás, gostaria de dar uma dica profissional: nunca use um gravador sem o consentimento do entrevistado. A não ser, é claro, que isso seja para o bem público. O que, francamente, minha querida, não é o caso - rebato mais ríspida do que gostaria. - Está entrevista acabou. Já tem material suficiente para formular algo sensacionalista.

Não dou chance para que Agatha balbucie uma palavra se quer. Levanto o mais rápido possível em direção a saída. Meus pés me levam até o elevador, que por sorte está livre. Aperto qualquer botão. Solto meu cabelo. Quero me livrar desse desastre.

Mensagem

Kahlil: A entrevista foi péssima. Prepare-se para ser bombardeada. Peço desculpas, de verdade. Não aguento a superficialidade das pessoas, Rita.  Vou para casa. Conversamos melhor depois.

Após o incidente, mensagens não param de chegar. Sem forças, nem ouso a bisbilhotar o celular. Presumo que sejam todas perguntando sobre o incidente de hoje. Prefiro ficar deitada na cama, ouvindo Runaway Train e concentrando minhas energias para escrever os próximos capítulos do meu livro.

Os versos me embalam e uma dor aguda invade meu peito. Ninguém tem ideia da extensão do meu caos. Afinal, quem iria se arriscar nas profundidades do desconhecido? Desbravar um terreno hostil, sem empunhar uma arma na mão? Desvencilhar-se dos seus conceitos para aprender a abraçar o defeito alheio? A impossibilidade desse amor me aflige. Talvez, minha descrença tenha criado barreiras, mas esqueceu de sequestrar a esperança. Ela, infelizmente, ainda arde nas canções que ouço. Runaway Train. Eu sou o trem desgovernado.

Restauro o pouco de coragem que me resta e checo o celular. Entre as várias mensagens de grupos, Maitê e Marie, só uma atrai meus olhos.

Mensagem

Rita: Não sei o que aconteceu entre vocês, Kahlil. Mas não há uma única matéria sobre o ocorrido. Liguei para alguns contatos, inclusive na revista. Nada. Achei tudo bem estranho. O silêncio é pior do que as manchetes. Você sabe disso.

Vai para a editora amanhã? Podemos nos encontrar lá.

Um arrepio súbito serpenteia o meu corpo, deixando os pelos dos meus braços ouriçados. Não sei se devo ficar feliz ou assustada. Isso nunca ocorreu antes. As pessoas não perdem um furo de reportagem.

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E aí, pessoal? Estão curtindo a história? Gostaria de saber a opinião de todos!

Esse capítulo terminou um pouco mais tenso, né? Hahahaha

Alcateia (Romance Lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora