Capítulo 10

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"Kahlil, não faz isso comigo!", a voz fina ecoa na minha mente. Afago os cabelos ruivos, mas de repente uma gargalhada invade o ambiente. O som parece que vai estourar minha cabeça quando abro os olhos. Estou suada, torta na cama, com dores no pescoço. O relógio marca 4:00 da manhã.

Sonhei com o dia em que conheci Nina. Meu fígado estava sofrendo as consequências de um relacionamento ruim. Queria me isolar ao máximo, por isso escolhi um bar desconhecido. O plano parecia simples. Tudo foi por água baixo, quando ela decidiu se desvencilhar das amigas e dar uma de psicóloga na minha mesa.

Eu estava nitidamente embriagada e lembro de poucas palavras daquela noite. Nina dizia algo como "eu não vou te deixar aqui sozinha" e em resposta eu era cada vez mais fria. Cheguei a pensar que ela era maluca, afinal, quem para de curtir seu final de semana para ouvir as lamúrias de uma pessoa bêbada? E pior! Que você não faz a mínima ideia de quem seja.

Como se não bastasse, Nina me levou para sua casa, porque fiz o favor de dormir no táxi, deixando-a sem opções. No dia seguinte, teve a cara de pau de dizer que transamos. Atordoada com as informações, tentei beijá-la na tentativa de manter as coisas menos estranhas. Foi quando ela gargalhou na minha cara, dizendo que tudo não passava de uma brincadeira. Se eu tive vontade de socá-la? Sim. Mas vingança é um prato que se come frio. A espera valeu a pena, afinal, não é todos os dias que se pode ouvir a Nina gemendo igual um gato escaldado.

Daquele dia em diante, nossa amizade foi crescendo absurdamente. A palavra "apego" me dava arrepios, mas Nina provou que essa possibilidade não era tão ruim. Também me ensinou que a coragem, fora da medida, torna-se tolice.

Ninguém imaginava que ela mantinha um segredo horrível sobre seu passado. Ela nunca quis olhar para atrás. Só eu e mais duas pessoas sabiam do ocorrido. A situação foi determinante para que sua personalidade se moldasse forte, solitária e independente. Feminista de plantão, jamais aceitou ser diminuída. Experimente falar que ela não consegue realizar alguma proeza e você estará invocando o demônio.

No quesito relacionamentos, sempre foi parecida comigo, com a sútil diferença que eu tenho o dedo mais podre do universo. No final, minhas escolhas rendiam boas risadas. Nina nunca teve papas na língua, simplesmente saia despejando tudo que vinha em mente: "Como você se apaixonou por isso?", "Miga, ela é muito tchonga", "Kahlil, quando você vai escolher alguém normal?", entre outras frases regadas de sinceridade e ironia.

No entanto, essa casca dura escondia um ser humano frágil que exalava amor. Bastava você saber como destrancar as chaves da armadura. Eu peno até hoje, por isso aqui vai algumas dicas caso queira conquistar a fera: tenha paciência de sobra, faça um curso com o buda, viva com os monges e depois retorne para tentar decifrar a mente dessa criatura. Eu morria de rir ao ver as ficantes/namoradas dela enlouquecendo. Acho que foi por isso que nos unimos: um problema se identifica com outro.

Arrancar confissões da Nina era como tentar retirar todo sal do mar, ou seja, impossível. Ela sempre decidia quando, onde e como ia falar o que lhe afligia - ceús! Até nisso ela prezava por total controle. Não a culpo. Durante toda sua vida, as coisas lhe escaparam da mão. Sua família sempre cooperou para decadência da sua autoestima. Mesmo com todo aquele batom vermelho e a postura autentica, sinto que ela nunca superou o fato totalmente. Parece estar sempre tentando provar a si mesma que pode superar as expectativas de todos ao seu redor, sem pesar as consequências.

Sempre cultuou sonhos, vida, determinação. Mas as experiências duras, cravadas no peito e abertas na pele, limitaram as tonalidades do seu cotidiano. Não há pistas do seu desespero e isso me preocupa. Nunca falamos muito sobre sua vulnerabilidade. Não mantínhamos uma relação de afeto exacerbado, mas as poucas vezes que precisei abraçá-la, dava para ouvir o seu choro por toda extensão dos cômodos. O seu corpo tremia e os medos ficaram tão nítidos que desejei protegê-la. Claro que jamais permitiu essa proximidade. Preferia estancar o próprio sangue, morrer sozinha, do que abrir a boca e pronunciar qualquer coisa que se parecesse com um pedido de ajuda.

Também tínhamos nossos momentos hilários. Certa vez, a Renata, uma minha amiga da faculdade, quis ficar com tentar a sorte. Me encheu o saco por oito horas intermináveis, após ver a foto da ruiva no meu celular. Estávamos indo para a casa que ela havia alugado no Rio de Janeiro. Então podem imaginar que esses minutos, horas e segundos foram longos.

Renata se concentrou em fazer todas as perguntas possíveis e inimagináveis sobre a ela. Inclusive se já havíamos ficado ou transado, porque caso a informação procedesse, gostaria de saber o que fazer para agradá-la na cama. Isso me gerou uma série de gargalhadas tão intensas, que tive que parar o carro no acostamento, porque lágrimas escorriam pelo meu rosto.

Em resumo: Renata não conseguiu domar a ruiva - eu bem que avisei. Usou um lingerie ridiculamente provocante, que Nina definiu como "pornô pobre ou mal gosto? Eis a questão". Ainda teve a cara de pau de pedir para Nina passar protetor solar nas suas costas. A rainha da ironia se limitou a dizer "a Kahlil parece mais interessada". Se eu tive vontade de socar a cara das duas? Claro! Mas estava me divertindo bastante com as patadas da Nina e as investidas da Renata. Como uma boa amiga, apenas fiquei observando o circo pegar fogo diante dos meus olhos, alimentando-a com alguns comentários aqui e ali.

Outra situação engraçada, foi o dia em que Nina inventou de ir jantar comigo no shopping e consequentemente teve que arrastar uma amiga do trabalho, porque estava de carona. Tudo corria bem. Até que Laila cometeu o pequeno deslize de bancar a psicóloga, igualzinho ao que Nina fizera no dia em que nos conhecemos. A resposta foi curta e grossa, dava para sentir um iceberg se formando. "Laila, a Kahlil não precisa de outra ruiva barra psicóloga, ok? Eu já fiz esse papel a dois atrás. A propósito, se você quer levar ela para a cama, está fazendo errado, ela odeia perfumes enjoativos e prefere as morenas". E foi assim que um jantar normal se transformou em uma noite memorável devido a sinceridade extrema da Nina, com tudo e todos. Dica: jamais tente ocupar o lugar dela, nem pense nisso. A menos que você queira enfrentar uma tempestade de ironia. Ela era ciumenta com absolutamente tudo que lhe parecesse seu: coisas, pessoas. Imagine com as namoradas.

Falando em namoradas, frequentemente tinha que auxiliar as novatas para compreender o cubo mágico que era conviver com a Nina. Era como jogar um dado todos os dias e rezar para que caísse na casa certa. Fora as variações de humor, ela era uma pessoa de fácil convivência e muito, muito amorosa. Perdi a conta das vezes que fez barracos para defender os outros. Eu não escapo dessa lista. Por exemplo: quando minha ex me traiu, ela não se conformou em esperar o karma dar conta do processo. As coisas tinham que ser instantâneas na sua concepção. Fez de manhã, colhe a tarde. Partindo desse raciocínio, teve a brilhante ideia de mandar flores para casa da minha ex sogra, que continha um cartão enorme escrito com uma caligrafia caprichada: "Meu amor, sei que vai se casar com o Mateus em breve, mas mal posso esperar para te ver de novo. Sinto falta do teu corpo. Com amor, Tifany".

Imagine só o reboliço. Minha ex me traiu com um homem e mais duas mulheres, entre elas a Tifany. Sua família era católica e jamais aceitaria sua sexualidade. Para completar, Nina me contou o fato somente à tarde, quando já tinha enviado o pacote. Segundo ela, eu teria barrado sua genialidade. Mas cá entre nós, adorei a vingança.

O celular desperta, encerrando meu transe. Agatha diz em uma mensagem que precisamos conversar e meu coração acelera. Odeio essas frases clichês que servem apenas para causar aflição. Respondo um "ok" e marcamos de nos encontrar numa padaria próxima de casa.

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E ae, pessoal! Tudo bem? Decidi falar um pouquinho mais sobre a Nina, porque ela é uma personagem que tem despertado bastante interesse em vocês. Então, espero que tenham gostado da decisão e apreciado as informações sobre a ruiva favorita da galera haha

Decidi que a partir da semana que vem vou postar um capítulo bônus toda segunda, que consequentemente será menor e outro na sexta que será maior. O que acharam da decisão?

Não se esqueçam de votar e comentar. Adoro ler a opinião de cada um de vocês! :)

Beijos, até segunda! ^^


Alcateia (Romance Lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora