Uno

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O sol nasceu. Deixou escapar um raio, dois, todos. Era só mais um dia como outro qualquer quando Luis Fernando acordou. Olhou para o relógio com a pressa de quem tem sua maior urgência só para a próxima encarnação. Foi escovar os dentes. A água que entrava pela boca tinha gosto de manhã. Café passado, lençol dobrado, cabelo penteado. Gosto de mais um hoje. De novo, hoje. 

Olhou para a janela pensando no que ainda não chegou. Aquela parceria estava quase fechada e o outro projeto finalizado, mas ainda assim achava que o trabalho não ia bem. O próximo passo seria abrir um novo empreendimento. Se vestiu, procurando aquilo que ainda poderia ser inventado. As novidades povoavam sua vida como segundos subseqüentes que não servem para construir o futuro, e sim para preencher o presente. 

Seu caminho era sempre igual. As mesmas árvores, os mesmos meninos no sinal, as mesmas ruas, praças, casas, cores - a cidade ainda tem cores? Seu caminho era o óbvio. Ia porque ia, era onde devia ir. O trajeto era mais rápido. Os atalhos saciavam sua ânsia de chegar, as refeições, sua ânsia de voltar. O importante era ir sempre. Ia, logo, existia. 

E na sua vontade de existir, deixou passar o vento que soprava cantando na janela. Os raios que deitavam no espelho e dançavam coloridos pelo chão. A música boa que o barulho do silêncio faz. A vida era assim. Não se lembrava da última vez que tinha pensado em como a vida deveria ser. A vida deve ser vivida, e só. 

No jogo da vida, os objetivos passaram a ser como a carta que a gente tira no início da partida. O sucesso tem matemática, foi assim que aprendeu. Casas que podem ser andadas para frente ou para trás, metas, bônus, chegada sempre. E a sua carta já tinha sido tirada, não adiantava querer pegar mais da banca, não. 

Desde pequeno Luis Fernando sabia bem o que queria: uma empresa sua, casa de praia, carrão. Precocemente focado, muitos diziam então. Sempre saber o que quer é uma bela forma de não se perder nas vielas do caminho, tomar já uma direção. E foi assim que ele cresceu, com o mapa do seu desenvolvimento nas mãos. Procurar o destino era para os fracos, os fortes nasciam já bons. Na vida, saber onde se está indo é o principal. Saber onde se está indo, rapaz. 

Na eterna ida, esqueceu o caminho de casa, o caminho da volta. Sua história tinha sido construída em Lego de montar, daqueles que não dá para tirar a peça de baixo sem derrubar todas as de cima. Mas o que você faz quando tudo que construiu na sua vida não trouxe bem os resultados que se queria? Joga tudo para o alto e vai velejar? Isso ele sabia bem, não dá. A vida é o que é. E com certeza não é um seriado norte-americano. 

Para completar sua mais nova manhã de hoje, o trânsito de ontem parou para o esperar. O trânsito é a mais paciente das criaturas. A velocidade de dois metros por minuto era como o amanhecer: vinha todos os dias o assombrar. Ninguém o contou que ia ser assim. Ninguém sequer contou que fosse ser assim. Não se lembrava bem em qual momento viver tinha se tornado tão sempre, tão menos vivo e mais igual. Por vezes se perguntava mesmo se essa tal de vida não tinha sido algo que alguém bem entediado inventou. 

Ainda era jovem, mas já sentia que o destino era como um camaleão que engana: só bota os dias para nascer. Essa era sua sina. Manhãs que puxavam manhãs de uma vida que lhe tinha sido dada em um mapa. Conforme aprendeu, nela cada um tinha a seu papel. O de acordar, comer, dormir e ganhar era o seu. E assim cresceu, esquecendo a importância do minuto vivendo na irrelevância do dia. 

Como nesses segundos que nunca percebem ser especiais, tateou por dentro do porta luvas procurando o mp3. O carro era recém-comprado. Usado, mas importado. Andar com a marca era essencial. Coisas da burguesia, sabia. Também tinha tido aulas de história em colégio particular. Te falam para levantar a bandeira da revolução enquanto você entra no mercado de trabalho. Luis Fernando não era da resistência, queria o mercado trabalhando a seu favor. 

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⏰ Última atualização: Sep 01, 2015 ⏰

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