A NOITE ESTAVA calma. As ruas, silenciosas, desertas. De repente pôde-se ouvi-los, os passos. Leves ruídos das solas de delicados pés descalços em disparada por sobre o áspero cimento da calçada. A respiração ofegante e aflita. A voz sussurrando algo que não se podia compreender, sons balbuciados que não chegavam a formar palavras. Aos pés da escada que levava à entrada de um dos pequenos prédios de apartamentos da vizinhança, havia um caixote de lixo adiantado demais, invadindo uma parte do passeio, e numa das tantas vezes em que ela se virou para trás acabou colidindo com ele, perdeu o equilíbrio e caiu. Ralou um joelho e a palma de uma das mãos. Ainda assim, pensou: não, não podia parar.
Pôs-se de pé num instante e continuou correndo.
Queria que alguém abrisse uma daquelas portas e oferecesse ajuda. Queria que alguém a acolhesse, lhe desse proteção, segurança. Queria avistar em qualquer lugar dois braços solidários estendidos em sua direção. Mas não. Nada. As portas e janelas continuavam fechadas. Todos pareciam ignorar sua corrida desesperada por aquelas ruas, pareciam achar melhor não ver, não ter de tomar conhecimento do mundo real, quando a ilusão era seu único alento, as poucas migalhas de paz a que ainda tinham direito. Foi quando ela quis chorar. Já estava chorando, na verdade; apenas não havia se dado conta disso ainda.
Quando se aproximava da esquina seguinte, ouviu o barulho. Um carro. Vinha subindo a ruatransversal e ela nem teve tempo de pensar bem no que fazer, apenas desceucorrendo ao encontro dele e se pôs a sua frente, gesticulando, aflita, para queo motorista parasse. O homem ao volante pareceu assustado ao avistá-la ali, barrando sua passagem. Quase afundou o pé no pedal do freio e deu marcha à ré, mas logo se conteve e só reduziu a velocidade, encarando a jovem com uma expressão cismada.
Ela parecia ser de origem hispânica — o homem escutou que lhe dizia alguma coisa numa língua que ele não entendia, provavelmente espanhol. Era uma mulher bonita, sem dúvida muito atraente, e vestia uma peça única, um minivestido branco ousado com um largo decote em V cobrindo-lhe o corpo até a altura de uns três dedos na parte superior de suas coxas grossas. Na verdade o tubinho não escondia muito. Não só pelos seios médios e firmes quase à mostra, mas pela própria aderência da malha, que delineava e destacava suas curvas, sua cintura bem feita, as nádegas redondas, salientes. Além disso, o tecido leve, macio e fino era também um tanto transparente, ele notou. Era possível entrever, através dele, os círculos escuros dos mamilos dela.
A mulher tinha, se muito, vinte e poucos anos, o homem no carro talvez tenha pensado, sem ser capaz de se concentrar na ideia foragida em meio ao fluxo disparatado de coisas que passavam em sua cabeça na eternidade daqueles dois segundos transcorridos entre o instante em que a viu e sua decisão de parar para lhe perguntar o que se passava, como ele poderia ajudá-la. Por certo, havia tido ao menos uma impressão superficial do que estava evidente: que ela estava muito maquiada, com brincos não muito grandes mas tampouco discretos, as unhas cobertas com um esmalte escarlate brilhante; sem falar que era impossível não notar que estava descalça e não levava nas mãos os calçados, como as bêbadas de fim de festa, tampouco carregava alguma bolsa. Quase nua como estava, não parecia uma ameaça, o homem concluiu. Foi só por isso que parou. A garota ali, de braços estendidos e mãos erguidas à sua frente. Com certeza ela não trazia consigo uma arma, a não ser o próprio corpo, que, para um sujeito franzino, feio e tímido como ele, não raro era tão intimidador quanto o cano de um revólver a poucos centímetros de sua cabeça.
Quando ela apoiou as mãos em cima do capô do carro, cansada — exausta, na verdade —, e fez menção de correr para a porta e para o assento do carona, ouviu-se um estouro às costas do motorista. Pá! Um tiro, sem dúvida. Então veio outro. Outros vieram. Um, dois, três furos na lataria. No susto, o motorista olhou de lado e viu. Pelo meio da rua quecruzava aquela, dois homens vinham correndo, já se aproximando da esquina, umdeles com uma arma na mão. Não, não eram dois — eram três. O outro, mais velho,vinha logo atrás, incapaz de acompanhar o ritmo dos primeiros.
A reação do motorista foi instintiva, instantânea. Enquanto a moça ainda estava na frente do carro, ele pisou fundo no acelerador. Temeu que ela estivesse com eles, que aquilo fosse uma armadilha em que estava prestes a cair. Temeu o roubo. A morte. Tremeu. Nem viu o carro atingi-la e derrubá-la. Nem viu o sinal fechado na esquina seguinte. Nem viu o vento invadindo o carro pela janela quebrada no banco de trás, todo aquele vidro esfarelado por sobre o assento. Pelos próximos quilômetros, percorridos na velocidade dos desatinados, ele só viu a morte às suas costas. Sentiu seu hálito gelado lhe arrepiar os pelos da nuca. Pisou mais fundo ainda.
A jovem, tão subitamente quanto havia cruzado o caminho dele, desaparecera de seus pensamentos, onde só os estouros de tiros ecoavam nas trevas da incerteza das horas por virem. Porém, lá atrás, no chão à beira da calçada, ela agora se contorcia e gemia. A perna direita doía insuportavelmente. Uma fratura era certa, não era preciso ser médico para deduzi-lo. Também havia batido a cabeça, não se saberia dizer se na lataria do carro ou se no asfalto que cobria a rua, de modo que havia um grande corte próximo a sua têmpora esquerda, de onde o sangue escorria pelo lado do rosto e empapava-lhe os cabelos.
Quando os homens se aproximaram, os dois primeiros, viram que aquilo não era nada bom, mas ficaram calados, olhando fixamente para a mulher estirada no chão. O terceiro, o mais velho, alcançou-os finalmente, bufando e praguejando. Aproximou-se, abrindo espaço entre os dois, pondo-se bem diante da moça, que continuava gemendo e chorando, e ela olhou para ele e disse algumas palavras inúteis, coisas que sabia muito bem que ele não conseguia entender, embora não fosse difícil deduzir que lhe pedia ajuda, que precisava de socorro urgente. Uma ambulância ou um milagre divino, quem sabe. Na situação dela, dava no mesmo. Eram ambos desejos irrealizáveis.
"Que merda!", foi tudo o que disse o homem.
Então, deu uma rápida olhada ao redor. Nenhum sinal de curiosos. As pessoas no mundo estavam em seu devido lugar, como deviam estar sempre. Sacou a arma que trazia enfiada no cós da calça e disparou. Dois tiros bem no centro do rosto dela. Aquela beleza exótica capaz de seduzir tantos homens num instante destruída pelo poder de dois projéteis metálicos. Então, um último espasmo, antes da imobilidade eterna da existência apagada. Então o silêncio. O fim.
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Sangue latino
Mystery / ThrillerUma jovem é morta numa rua residencial de South Boston. A investigação fica por conta da Sargento Detetive Alicia Santos, da Divisão de Homicídios da Polícia de Boston, e seus dois parceiros, os detetives Mark O'Donnell e Jack Logan. Filha de uma br...