ALICIA CONHECIA BEM aquelas ruas e muitos ali ainda se lembravam dela. Alguns destes, pelo pior dos motivos: o pai. Henry Walsh era um homem notório e temido, mais conhecido pelo apelido de Mad Dog, o Cachorro Louco. Por muitos anos, fora um dos homens fortes da máfia irlandesa em South Boston. O tipo que mandava e desmandava naquele pedaço. Todos sabiam quem era Mad Dog e ninguém queria conhecê-lo pessoalmente, ter de ficar cara a cara com ele. As pessoas comentavam o que ele supostamente já havia feito. Várias vezes. O que era capaz de fazer.
Infelizmente, nem todos estavam tão bem informados.
Um dia, Mad Dog se encantara com a beleza de uma jovem brasileira que devia uma boa soma a uns caras que ele conhecia — os que a ajudaram a entrar no país clandestinamente e que agora a vinham ameaçando, atrás do que ainda não havia sido pago. Ao saber da situação, Mad Dog tomou a iniciativa. Quitou toda a dívida da moça, que também se deixara iludir pelo charme — e pelo gesto — dele e acabara se apaixonando. Não demorou muito, ela engravidou.
Até então, Maria Lúcia não fazia ideia das atividades criminosas em que Henry estava envolvido. Por causa do armazém de fachada que servia ao grupo, ela achava que ele fosse um comerciante que vinha se saindo razoavelmente bem no competitivo mercado americano. Quando finalmente descobriu quem era o homem que amava, quando o prenderam por contrabando (aquela já era a segunda passagem dele pela prisão, embora ela ainda não o soubesse), estava no oitavo mês de gestação e os dois ainda não estavam casados. Foi melhor assim. Não só pela decepção de descobrir sobre a suja vida pregressa de Henry, mas sobretudo pelo fato de ele manifestamente rejeitar a filha, ao tomar conhecimento de que Maria Lúcia dera à luz uma menina.
Depois daquele dia, Maria Lúcia resolveu criar a filha sozinha. Batalhou duro, encarando atividades árduas, o tipo de trabalho às vezes visto como humilhante e por isso reservado aos imigrantes em situação irregular, os quais os Estados Unidos tanto repudiavam, mas cuja mão de obra barata e eficiente poucos estavam realmente a fim de dispensar. O sonho americano de Maria Lúcia se limitava a faxinas pesadas numa casa e noutra, a panelas gordurentas para lavar, a crianças insuportáveis para cuidar, a velhos doentes acamados em casa, nos quais dava banhos e cujas fraldas geriátricas ela trocava sempre disfarçando o nojo. Era isso e cuidar de Alicia (a quem nunca deu o sobrenome do pai, apenas o seu), em todo o tempo em que a menina não estava na creche. Maria Lúcia também frequentava muito a igreja. Ia a mais de uma missa por semana na igreja católica da paróquia local — não só pela fé que arrastava consigo pela vida afora, mas porque era entre os paroquianos que conseguia muitos dos que contratavam seus serviços. Tudo isso ela enfrentava sem lamentação ou remorso. Seu único arrependimento era mesmo ter condenado a filha a conviver com a consciência de que tipo de homem era seu pai. O tipo que, inclusive, negava-se a vê-la como tal, como filha.
Se às vezes o destino realmente sabia ser irônico com algumas pessoas, como diziam, podia-se dizer que Henry Walsh tinha sido um dos escolhidos para conhecer essa ironia. Enquanto estava preso, descobriram um tumor crescendo dentro dele, ao qual ele sobreviveu por muita sorte. O problema foi que a mesma quimioterapia que lhe salvou a vida também deixou Mad Dog estéril. Ele não poderia mais ter filhos. Não poderia mais ter o filho que tanto desejava pôr no mundo para seguir seus passos tortos. Seria obrigado a aceitar que seu legado genético, o único sangue jovem que continuava no mundo a história de seu sangue cada vez mais velho, era e continuaria sendo uma menina.
Uma menina que cresceria na mesma vizinhança, mas o conhecendo apenas de vista, de longe, de avistamentos rápidos, em raras ocasiões. Ela que faria questão de ser expressiva e expansiva ao falar em português com a mãe ou com alguns parentes com quem falava pelo telefone (os quais ela nunca pôde conhecer pessoalmente), mas era sempre sucinta e direta ao falar na língua do pai, esta que só lhe interessava por ser o idioma falado pela maioria das pessoas no país onde vivia. Uma menina que se faria durona com o passar dos anos, que aprenderia artes marciais, várias técnicas de autodefesa, que se tornaria letal manejando uma faca ou atirando contra algum alvo vivo parado ou em movimento. Animal ou humano. Uma menina que se tornaria uma mulher decerto mais bem preparada que qualquer um dos homens que trabalhavam sob as ordens de Mad Dog e para os que davam ordens a ele.
Quando o câncer de Henry Walsh voltou, quase duas décadas mais tarde, essa garota já lhe havia tido a oportunidade de lhe ensinar essas e algumas outras difíceis lições. Todo dia ela lhe provava o quanto ele estava enganado em tudo a seu respeito. Ainda assim, Mad Dog morreu sem aceitar a filha. Não que para Alicia isso fosse fazer qualquer diferença. Ela que, por outro lado, sempre o aceitara — como um estímulo com o sinal invertido, uma contrainspiração, o não exemplo do que ser ou fazer. Nesse sentido, Mad Dog foi sem dúvida uma forte influência na vida da filha. Sempre que mirava nele, Alicia sabia claramente a direção que não deveria tomar.
***
Alicia ficou satisfeita ao descobrir que Logan fora bem-sucedido em conseguir as imagens. Depois de explicada a situação, a empresa responsável pela segurança da loja de penhores que tinha uma câmera instalada bem na esquina da rua onde havia ocorrido o homicídio da noite anterior concordou em ceder a gravação de bom grado.
"Claro que eu tive de ligar para o plantonista, que por sua vez me passou para outra pessoa, que me transferiu para outra", disse o detetive. "Mas o que importa é que, no fim, um funcionário da empresa apareceu hoje cedo aqui no DP com uma cópia do que a câmera registrou entre 9h e 11h da noite de ontem."
Depois que Jack Logan foi para casa, o semblante visivelmente cansado após tantas horas contínuas de serviço, Alicia e Mark O'Donnell foram assistir às imagens. Nos primeiros setenta minutos das duas horas de filmagem disponibilizadas, cinco carros eram vistos passando pela câmera, subindo ou descendo a rua. Todos seguiam em velocidade normal, sem chamar a atenção. Às 10h13, porém, viu-se um Honda Fit de cor escura (imprecisa, pois as filmagens eram em preto e branco) acelerando rua acima, pisando fundo sem dúvida alguma. Como os vidros laterais direitos estavam intactos, podia-se concluir que, fosse mesmo o carro envolvido na cena do crime, os estilhaços vinham de algum vidro do lado oposto, o do motorista.
Fazia sentido, pensou Alice. Na rua transversal, os peritos haviam encontrado umas cápsulas de pistolas calibres .40 e .380 caídas no chão, a poucos metros da esquina com a outra rua, onde fora encontrado o corpo. Decerto as balas haviam sido disparadas contra o carro em fuga. Mais de um atirador, pelo visto.
"Talvez por isso ele tenha atropelado a garota", disse O'Donnell.
"É, talvez", concordou Alicia. "A placa. Consegue ver os números?"
O'Donnell espremeu os olhos. Concentrou-se.
"A placa é do estado, com certeza. Quanto ao número, bem, parece ser... Sei que termina com PH5. É isso. Só isso que consigo decifrar."
"É só o que identifiquei também."
"Não dá para distinguir o resto. Está muito borrada a cena."
"Pois então isso vai ter de servir", decidiu Alicia por fim. "Peça ao Mike para checar as placas no estado com a terminação PH5. Informe o tipo de veículo que a gente está procurando."
"Pode deixar."
Assim que O'Donnell saiu da sala, Alicia ficou olhando para as fotos que a perícia fizera no local do crime. Embora já estivesse acostumada a ver vítimas de assassinato, a imagem da garota perturbava a sargento. A essa altura, não dava mais para continuar evitando essa conclusão óbvia. Ela olhou para o detalhe da tatuagem. Siga o seu coração. Ali estava um dos motivos para nunca ter se permitido fazê-lo. Havia uma razão para a palavra sonho estar listada entre os antônimos de realidade.
Enquanto esperava, apanhou o celular e ligou para o primeiro número que aparecia no registro de últimas chamadas realizadas. Quando atenderam, disse, num português perfeito, as vogais nasalizadas com naturalidade, sem esforço algum:
"Alô! Mãe?"
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Sangue latino
Mystery / ThrillerUma jovem é morta numa rua residencial de South Boston. A investigação fica por conta da Sargento Detetive Alicia Santos, da Divisão de Homicídios da Polícia de Boston, e seus dois parceiros, os detetives Mark O'Donnell e Jack Logan. Filha de uma br...