''Quando a humanidade viveu, foi decretado que ela também morreria. Assim como há a luz e as trevas, os anjos negros fariam o vento da vida parar de soprar.''
─ Ela vai ficar bem? ─ ouviu uma voz frágil perguntar.
─ Não sei.
Esse pequeno diálogo ecoava em sua cabeça. Ora ficava longe, ora perto. Seu olhos avistavam alguns traços de luz, enquanto lutava para abri-los, mas eles simplesmente imploravam para se fechar, como se não estivessem na hora certa de fazê-lo, como flores não desabrocham quando não estão em seu tempo.
A moça de pele clara, cabelos castanhos longos e boca rosada, em forma de coração, tentou se levantar. Era linda, tinha uma pureza em sua essência que, mesmo sem terem trocado uma palavra, o pai de Raul, Maurício, notou.
Fora ele quem a trouxe para a própria casa, depois de seu filho encontrá-la na floresta, dormindo em cima de pedras, ferida e sozinha. Tentava agora ajudar. Mas algo o incomodava, algo grande.
Quando pôs seus olhos na moça pela primeira vez, não pôde acreditar. De suas costas saíam coisas pretas, asas.
Maurício não precisava de muito, gostava da simplicidade. Vivia no campo com seu filho, tinha o hábito de caçar para se alimentar. Ele e Raul faziam exatamente isto quando encontraram quem quer que fosse aquela pessoa. Aquele sereno ser. Logo, percebendo que sangrava e estava desacordada, a socorreram. A colocaram em seu carrinho e a levaram até sua residência.
Pena que ela atraía atenção demais. E logo os camponeses que moravam perto da vila de Maurício bateram em sua porta, a acusando de ser algo ''do demônio'', que Deus mandou matar aquela tal aberração.
─ Raul, precisamos sair daqui, filho!
─ Por que, papa?
─ Os homens das redondezas se juntaram, estão com tochas vindo em nossa direção. Pedro lhes disse besteiras, a acusou de ser algo maligno.
A garota olhava intrigada para eles. Os observando como se fosse um cachorrinho em uma nova casa. Com curiosidade.
─ Mas ela não é ─ a olhou ─ É?
Não obteve resposta, mesmo se a menina quisesse responder, não poderia. Os outros camponeses, comandados por Pedro, já estavam passando da cerca. Maurício puxou o filho e correu, mas o pequeno insistia em chamá-la.
─ Vem! Eles vão te machucar ─ berrava.
Batidas fortes na porta. Medo nos olhos de ambos, pai e filho.
Maurício botou a mão na boca de Raul e o colou em seus braços. Correu porta da cozinha a fora como nunca na vida.
Os homens furiosos conseguiram arrombar a porta de madeira e foram até onde a menina estava. A prenderam na cama, deita de bruços. Pareciam zangados, gritavam e assobiavam em uma agitação sinistra.
Um deles, com um facão, se aproximou e outro gritou:
─ Isso, Pedro! Faça ela sentir dor, estas aberrações não merecem respeito. São feitas para o inferno!
A garota gritou. Sentiu uma dor tremenda, ardente, agoniante. Cortavam suas asas. Olhou sobre seus ombros. Também deslizavam com profundidade aquele objeto cortante em suas pernas, porém, nada se comparava ao desgosto de ver suas asas caídas ali, ao seu lado. Sabia que iriam gostar de levá-las como prêmio e, só por este motivo, ficou feliz por um segundo, pois não conseguiram.
A mesma pessoa que incentivou Pedro, deixou a tocha que segurava encostar em uma cortina. Logo tudo estava perdido em chamas.
Todos saíram correndo, deixando ali presa um ser que, aos seus olhos, não merecia viver.
Mesmo assustada, ela conseguiu soltar as cordas que a prendiam. Não estava certa do que faria agora, havia medo em seus olhos. Foi às pressas em direção a saída que conhecia; por onde Maurício tinha ido.
O vestido branco que usava, que ia até pouco acima dos joelhos, de fino tecido, estava incendiado. Achou nunca ter sentido aquela dor, a do fogo. Jogou-se contra o chão, se batia no quintal dos fundos da humilde casinha.
Se ajoelhou, sua mente estava sendo penetrada por um estrondoso som. O odiara, era pior que a ardência da pele queimada. Viu uma luz branca e logo em seguida uma cena: Caia entre nuvens, cada vez mais próxima do chão, suas asas negras não funcionavam. Foi tudo muito rápido.
O horrível som que a incomodava passara. Sentiu alguns pingos em sua perna, haviam caído de seus olhos, pois estava chorando. Algo que achou estranho, sem saber porquê.
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A queda.
RomancePerdida entre o céu e a terra, entre pensamentos e buracos vazios de lembranças, com um peso negro sobre suas costas. É assim que Ayla caminha, ou tenta, em busca de suas raízes, impedida de ter um futuro por não saber de seu passado. Mas sua mente...