Parte ll.

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Os pássaros cantavam. Um barulho. A menina despertou. Acabara dormindo ali, na grama. Estava com um líquido vermelho pelo corpo.

Alguém se aproximava, temeu que fosse algum camponês do dia anteriror e moveu suas pernas o mais rápido que pôde, mesmo que não fosse muito, para o mais longe daquele lugar. Estava sem energias, cansada, vazia.

Já não aguentava mais andar quando chegou perto de uma pequena vila. Uma velha senhora que estava saindo de lá a avistou e correu acelerada ao seu encontro. Ficou impressionada ao ver a menina ensaguentada e tremendo, pálida.

─ Meu Deus! Você está bem? Ah, que pergunta idiota. Olhe seu estado! Venha, vou lhe ajudar.

Como estava fraca demais para pensar se podia ou não confiar na mulher, a deixou guiá-la.

Depois de lhe preparar um banho, enrolá-la em um lençol e lhe dar comida, se apresentou:

─ Meu nome é Adelaide e o seu?

Depois de encarar o chão por algum tempo, a jovem respondeu:

─ Eu… ─ não se lembrava de seu nome até que várias letras embaralhadas, em sua mente, foramaram uma palavra ─ Ayla ─ olhou Adelaide nos olhos, dizendo com certeza.

─ O que fizeram com você?

Ayla começou a chorar.

─ Arrancaram... Uma parte... De mim ─ falou entre soluços.

A velha se comoveu. Sentia vontade de colocá-la em seu colo e balançá-la, como as mães fazem quando suas crianças estão com medo de algum monstro e choram.

Adelaide perguntou de onde ela era.

─ Eu não lembro de nada além de ser encontrada por dois camponeses, eles me levaram para sua casa e cuidavam de mim quando vários outros homens me acusaram de coisas feias. Me machucaram. Houve um incêndio. Me lembro pouco de como cheguei aqui, antes da senhora me ver.

A mulher estava aflita, queria tanto ajudar!

Sentiu algo quando viu Ayla, sentiu paz. Algo que não estava presente dentro dela há um certo tempo. Não queria que fosse embora. 

─ Fique aqui comigo, se quiser ─ não hesitou em falar, ou pensar sobre.

─ Posso?

─ Eu sei como é estar sozinha e perdida. Além disso, uma jovem bonita como você com certeza tem um passado e melhor que isso, um futuro. É sempre tempo de recomeçar.

Ayla observava cada detalhe da casinha; paredes beges, algumas marrons e movéis de madeira. Havia, em cima de um criado-mudo, três portas-retratos, dois sem fotografias, um com uma rasgada: era a foto de uma mulher, percebeu que era Adelaide pouco mais nova, sorrindo, transbordando felicidade, em um campo com flores amarelas e uma casinha ao fundo. O céu estava azul com nuvens fofas como algodão e ao seu lado, havia uma garota de cabelos médios e loiros levemente ondulados, seu sorriso ainda estava ali, mas o resto de seu rosto e corpo, foram retirados de maneira indelicada. 

A velha cozinhava algo no fogão, percebeu o olhar distante e parado da menina, que não piscava  enquanto observava a chama acesa.

─ Não vou deixar isto te machucar ─ falou, tirando os pensamentos da jovem do fogo, das lembranças do que ele fez ─ Criança, terei de comprar alguns ingredientes para fazer o almoço e...

─ Não, não me deixe aqui sozinha, por favor!

─ Se acalme, está bem ─ falou docemente, subiu as escadas e desceu rápido ─ Era de minha filha, pode vestir ─ entregou-lhe um vestido longo azul que cabia perfeitamente na garota.

─ Onde ela está?

─ Minha filha? ─ os olhos de Adelaide transbordavam bondade, mas então ficaram secos. Ayla pôde ver que havia algum ponto de tristeza escondido que se expandiu quando a velha lembrou-se da filha ─ Foi morar longe ─ sua voz saiu cansada, deixando claro que não queria falar sobre aquilo, mas ainda sim, disse da forma mais meiga possível, tentando camuflar.

─ Se quiser algo, pode pegar ─ Adelaide falou quando chegaram em uma mercearia e se separaram.

Ayla tentou pegar uma lata nas prateleiras.

Acabou derrubando tudo, sem querer.

Um rapaz veio ajudá-la. Quando olhou pra ele sentiu seu coração batendo forte. Teve a impressão de já conhecê-lo e algo estranho se mexia em sua barriga: ansiedade misturada a medo. 

─ Você está bem? ─ ele perguntou. Seu cabelo cacheado castanho quase ultrapassavam suas sobrancelhas, era pouco mais baixo que ela, provavelmene 1,65 de altura, tinha olhos azúis turquesa. A garota o encarava como se estivesse hipnotizada. Logo voltou a realidade com os gritos que Adelaide deu quando viu aquela cena.

─ Ayla! O que fez? Eu te deixo sozinha por um minuto e olha a bagunça que você faz! ─ falou séria enquanto olhava as latas espalhadas pelo chão e fitou de maneira estranha o menino. Prosseguiu dizendo de forma ríspida, forçando alguma leveza na voz ─ Desculpe, Bernard, ela é nova por aqui, não sabe como as coisas funcionam. Eu pagarei por qualquer dano.

─ Não sabe como uma prateleira funciona, senhorita? ─ sorriu para Ayla querendo que ela retribuisse, mas isso não aconteceu ─ Adelaide, não precisa pagar nada.

A garota pensou no que acabara de acontecer, percebeu que a velha o respondeu como se tivesse uma raiva secreta por ele ou qualquer outro sentimento que não fosse bom. Adelaide foi pegar umas ultimas coisas e Ayla se pôs a ajudar Bernard a catar o que podia.

─ Ayla, certo?

A menina assentiu.

─ De onde você é?

─ Um lugar distante ─ não pensou em nada melhor pra dizer ─ Já nos conhecemos? ─ não pôde evitar perguntar.

─ Não sei, mas também acho que te conheço. Acredita em vidas passadas?

Silêncio.

Ayla colocou algumas latas de forma desorganizadas na prateleira.

─ Coloca assim ─ Bernard se aproximou ficando na ponta dos pés, as organizando. Quando olhou para a garota percebeu que estavam perto demais. Adelaide cortou qualquer pensamento do garoto quando o chamou para pagar as mercadorias, já que ele estava responsável também pelo caixa. Depois, foi embora junto a jovem.

─ Se eu fosse você, não ficaria de gracinha com Bernard ─ falou como se fosse um aviso de perigo. E era.

─ Do que está falando?

─ Vi o jeito que se olharam. Se gostaram. Mas eu não quero te ver magoada.

─ Por que eu ficaria?

─ Os namoros dele nunca dão certo. Ele já teve uma noiva, ela foi assassinada e ele acusado de cometer o crime, mas sua família tem dinheiro e nada aconteceu. O mandaram embora daqui, mas voltou há pouco tempo.

Algo nessa história soava familiar demais pra ela. Mas o que?

A queda.Onde histórias criam vida. Descubra agora