Na rua deserta e umedecida pela fina garoa
que caía, caminhava a passos largos o
homem franzino conhecido como T. Sua
pressa tinha um único motivo, não queria
perder de forma alguma o jogo do Knicks,
torcedor fanático que era. Fez o serviço com a
destreza habitual já conhecida por seus
clientes que o contratavam a peso de ouro,
pagamento adiantado como de praxe,
problema algum para quem escolhia um
homem com tanto respeito no submundo. No
caminho gabava-se de quão bom era, a
encomenda fora mais fácil que pensava. Não
havia motivo para tanta preparação para
apagar Andy Baley, um burguesinho de merda
metido em dívida de drogas. É claro que a
coleta que tinha com as prostitutas de luxo
facilitava, conseguia informações valiosas, e
suas vítimas eram pegas por seguir sempre o
mesmo roteiro: jogar nos cassinos, se entupir
de drogas e depois trepar com algumas
garotas em um hotel qualquer. Riu, ao
lembrar-se do idiota se borrando todo, com a
45 enfiada até o talo na garganta. E a arma
ainda quente, lhe aquecia confortavelmente a
perna. Ao quebrar o primeiro quarteirão,
deparou-se com alguns mendigos
amontoados no beco, tentando vencer o frio
com uma pequena fogueira. Passou sem ser
molestado, o povo da rua conhece o perigo de
longe, fareja a morte iminente como um cão
ao seu alimento. Mas antes que pudesse
deixar para trás o cheiro fétido e nauseante
do local, teve seu braço segurado. Os dedos
coçaram para sacar sua arma, mas se conteve
e apenas com um movimento brusco puxou
aquele que o abordara ao encontro dos
punhos. Seus músculos relaxaram ao ver que
era apenas uma velha, imunda e maltrapilha.
- Não tem esmola hoje! - Na-Não quero
esmolas moço. - disse a mulher pressionada
no paredão gelado. - Quero apenas lhe dar
um recado que o vento me trás. Ele riu. -
Velha louca! Então conversa com o vento?
Não seja tola! Hoje poderia ter sido seu
último dia de vida. - Apenas escute a
mensagem, moço. - Além de louca é burra?
Não vê que ainda respira por pura
benevolência minha? Tua sorte é que hoje
estou sem tempo. Vá! Volte para o esgoto de
onde veio. - disse ele batendo a cabeça dela
contra a parede. A mulher, atordoada, saiu do
caminho, mas antes que ele sumisse de vista,
gritou: - Sim! Sim! A vontade dele era voltar e
descarregar sua arma na cabeça da maldita
mulher. Mas já era tarde e não podia perder o
jogo. Seguiu para o metrô, que naquela altura
estava completamente vazio. Sentou-se
confortavelmente encostado na janela, duas
estações e estaria enfim a poucos metros do
bar onde freqüentava. Na parada da primeira
estação entrou uma criança e sentou-se ao
seu lado, T. estranhou ao ver o menino, o
qual julgou ter no máximo dez anos, sozinho.
- Garoto, não está fugindo de casa, está? O
menino, branco como leite e trajado com um
terno mal costurado, sequer olhou para ele. -
Muito bem! Sua mãe deve ter lhe ensinado
para não dar conversa a estranhos. Notando
que o garoto não estava mesmo querendo
papo, ou sofria de algum problema auditivo,
virou-se para a janela. Sentiu um calafrio lhe
percorrer a espinha, ao perceber que não
havia no reflexo do vidro o pequeno
companheiro de assento. Virou-se novamente
para o menino e este com os olhos negros
como a noite, berrou de forma descomunal. -
SIMMMMMMMMMMMMMMMMMMM! Quase
saltou do banco, e praguejou ao ver que
estava sozinho no vagão. - Mas o menino, o
menino... Foi tão real. Só podia ter
cochilado... Mas fora tão real e tão... Tão...
Assustador! Definitivamente aquela noite lhe
parecia estranha. Queria chegar logo ao seu
destino. Na saída do metrô, suas pernas
ainda tremiam. - Porra, era só um garoto!
Era só uma merda de pesadelo. Bruxa filha da
puta, devia ter quebrado-lhe os dentes. Não!
Não! Devia ter-lhe rachado a cabeça. No bar,
enfim sentiu-se em casa, lá havia rostos
familiares, por mais que T. fosse reservado, ali
se soltava e trocava até algumas palavras
com o balconista. Após o cumprimento
amigável, foi servido com o velho Black Label
de todas as noites, o gole desceu suave,
seguido por um demorado trago no cigarro. E
na tevê postada em um suporte no canto do
bar, os Knicks entravam em quadra. Era um
jogo decisivo, poderia levar seu time à tão
sonhada decisão se passasse pelo Suns. Ele
ficou tão preso ao jogo que pouco reparou (e
foi o único no recinto que fizera isso) na loira
de quase dois metros que adentrou no bar,
trajando um tomara-que-caia preto. Mas essa
não tirava os olhos dele, e com um gesto
chamou o atendente do bar; este, após
atendê-la, voltou ao balcão e sussurrou no
ouvido de T: - Amigo, desculpe atrapalhar,
mas creio que seja por um ótimo motivo,
aquela loira maravilhosa que está sentada ali
no canto, pediu que lhe entregasse este
bilhete. Ele pegou o bilhete, e apenas sorriu
discretamente. Tomou o resto do uísque que
havia em seu copo, e o abriu. Dessa vez o
gole pareceu travar na garganta tamanha a
surpresa da mensagem. Em escrita bem
consolidada apenas três letras recheavam o
pequeno papel: SIM. T. virou-se para a
mulher, e ela retribuiu com um largo sorriso.
Intrigado, levantou e foi em sua direção, mas
fora atrapalhado por alguns jovens que se
amontoavam para ver o jogo. E nesse piscar
de olhos a perdeu de vista. Olhou
apressadamente por toda a parte, e mesmo os
olhos treinados de um assassino frio e cruel
não puderam localizá-la. Ela havia partido, e
agora ele não estava delirando, se é que em
algum momento estivera. O pequeno bilhete
ainda estava em sua mão. Sentiu-se parte de
uma brincadeira piegas, ou será... Será que
alguém notou o seu pequeno serviço noturno?
Estava confuso. E aquela situação atiçou seu
nervosismo de tal modo, que fora meio que
"sem prestar atenção em nada" para o
banheiro. (Mantenha o controle. Mantenha o
controle. Ninguém pode detê-lo. Você é o
melhor no que faz. O melhor!) O pequeno
banheiro do Massive's Night, não era diferente
dos banheiros de bares de qualquer subúrbio.
A luz fosca amarelada dava um ar ainda mais
sujo ao lugar, o cheiro de urina velha,
misturada com um desinfetante barato
qualquer, ardia nas narinas de qualquer um
que ali adentrasse. Abriu sua calça e aliviou-
se naquele mictório mal-cheiroso. Antes de
lavar as mãos, retirou algumas folhas de
papel toalha para cobrir sua mão. Não queria
se contaminar com bactérias vindas de "paus
sebosos". Abriu a torneira e encheu as mãos,
lavando em seguida o rosto, repetiu isso por
duas vezes, e com os olhos fechados tateou o
porta-toalhas. Enxugou o rosto com o papel, e
quando abriu os olhos não viu apenas sua
imagem. Além do seu reflexo, havia no
espelho, escrito a dedo no vidro pouco
embaçado, a palavra SIM. Passou as mãos
sob a cabeça raspada, para enxugar as
pequenas gotas repousadas, meteu a trava na
porta e sacou sua pistola, antes de conferir se
havia mais alguém ali. (Vocês não vão me
pegar! Não vão! Estouro seus miolos antes
que respirem, antes mesmo que possam
piscar) Guardou sua arma novamente e saiu
do banheiro. Desconfiando de todos que ali
estavam, pagou sua conta, deu uma pequena
conferida no jogo e saiu apressadamente. Sua
cabeça estava a mil com tudo aquilo, e ele só
queria ir para casa. Em sua mente uma voz
estranha começou a sussurrar: SIM! SIM! SIM!
SIM! Ele, no desespero, começou a andar mais
e mais rápido, e aquela voz martelava em sua
mente, em um ritmo cada vez maior. Ao
passar em frente a uma loja de eletrônicos,
teve a impressão de ver em todas as telas a
mesma mensagem. Com o susto atravessou a
avenida, e distraído não percebeu o Maverick
azul que dobrara a esquina em alta
velocidade, seu corpo fora atirado com
brutalidade e seu sangue coloria de vermelho
a calçada cinzenta. Estava consciente e
sentia que não ia escapar com vida dali,
pensou na ironia do destino, morrer de uma
forma tão banal, pois, para um matador de
aluguel como ele, morrer assim era quase
uma humilhação. Quem o atropelou nem
sequer parou para prestar socorro, e ele ficou
ali, estirado por um longo tempo, sentindo a
morte chegar lentamente. Tempo suficiente
para ver sua vida passar como um filme,
desde a infância até aquela noite, quando
após subornar o zelador do hotel, entrou no
quarto 105, e encontrou seu alvo
completamente distraído na banheira, ele
aguardava sua acompanhante. Mas mal sabia
que essa, além de não aparecer havia lhe
entregado para seu executor. - Serviço de
quarto... - disse T. apontando a arma para
Baley - Q-Quem é você? - Você deixou
alguém muito, mas muito aborrecido garoto. -
Mas.. - CALE A BOCA! CALE A MALDITA A
BOCA, OK? (silêncio) - Isso, assim está bem
melhor rapaz. Agora onde eu estava? Ah sim!
Você deixou alguém muito aborrecido, e essa
pessoa me pediu que viesse dizer isso a você.
Mas, sabe como é, não sou muito bom com as
palavras. - Na-Não pelo amor de d... - CALE-
SE! - enfiando a arma na boca do rapaz -
Não sou bom com as palavras, e vou resolver
do meu jeito. Vou mandar você para o inferno.
Quando chegar lá, pergunte ao diabo se tem
um lugar para mim... Nas ruas, as pessoas
começavam a chegar aos montes, gritando, se
abraçando. Os fogos coloriam o céu. O Knicks
havia vencido. Mas para T. isso não faria
diferença... Era o fim da linha para ele. E a
mensagem tão repetida naquela noite agora
fazia sentido.