Capítulo I

73 1 0
                                    

É uma habitual sexta-feira. O relógio marca seis e quarenta e cinco da tarde. Às sete eu terei que estar no artistic coffee. Não que isso fosse um esforço, longe disso. Na verdade, aquele era o meu lugar favorito na pequena Sunset City. No mundo todo, talvez.
E eu estou me sentindo, especialmente, bonita esta noite. Meus cabelos grossos, castanhos e volumosos estão caindo, leves, sobre meus ombros. Minha pele clara está em perfeito contraste com o vestido de renda azul-turquesa escolhido para hoje.
Hoje é meu dia de recitar poemas e tocar piano. Além de ser responsável pelo concurso que há de ocorrer hoje.

À esta hora, sete e dez, já estou no palco do artistic. Graças ao tamanho da cidade, além da minha localização ao centro, sou privilegiada de estar em, no máximo, vinte minutos em qualquer lugar.
-Bem-vindos ao Artistic Coffee. -Minha voz soou ao microfone, fazendo com que todos voltassem suas atenções para mim. -Esse é o VIII festival anual de poesias e versos. -Ouve-se alguns aplausos e assobios. -Nossos candidatos são: Kelly Winston, Josh Stefan, Pietra Girard e James Luck. Como de costume, iniciaremos o concurso com um poema do orador, no caso eu, e, em seguida, cada um fará sua performance e o voto é por conta de vocês. -Todos aplaudiram.
Os garçons passavam entre as mesas servindo café, suco ou qualquer outro líquido cujo era pedido. As luzes baixaram, e começou a tocar uma música ao fundo. Eu havia esperado desde meus quinze anos por esse momento, e hoje, com dezenove, estou realizando. Ganhei o concurso do ano que passou e agora sou oradora. Logo minha própria voz começou a soar nas caixas de som, calma e aveludadas, com pausas precisas entre uma palavra ou um verso e outro.

"Eu não conheci pontos finais,
Eu não conheci limites,
Eu conheci o teu amor,
E a forma que tu me consumistes.

Eu sei por onde teus olhos passeiam,
E sei onde devemos ir,
E o que eu mais quero agora
É te fazer sorrir.


Então vem com a tua paz,
E

acalma meu coração.
Minha alma pede tua alma,
Teus lábios são uma prisão.

Eu sei que vou te ter aqui,
Sei que vamos fugir,
O teu peito é meu refúgio
E, sem você, a vida é um lugar escuro."

Assim que eu terminei de recitar, meus olhos encontraram o de um rapaz. Olhos negros e pele branca, foi o que registrei. Não me permiti olhá-lo por mais do que três segundos, mas, mesmo depois de desviar o olhar e descer do palco, ainda pude sentir seu olhar pesado sobre mim, tão invasivo, que chegavam a ser como chamas que ardiam, sem piedade alguma, sobre minhas costas.
Ainda nesta noite, Kelly Winston ganhou o concurso. Cantei, como de costume, e toquei piano. A noite inteira, fui invadida por olhares do mesmo rapaz. Ele usava uma jaqueta de couro e seus olhos, juntamente ao seu rosto, não expressavam nada. Apenas me alisava.
No fim da noite, coloquei meu casaco sobre os ombros, peguei um táxi que estava passando ali na frente e fui pra casa. Aqueles olhares permaneceram na minha mente até o dia seguinte.


Sábado, oito e vinte da manhã. Me encontro dentro do laboratório de biologia, analisando a folha de algumas plantas junto com minha dupla, Luíza.
-Acho que acabamos o relatório. -Luíza diz, ao meu lado.
-É, acho que sim. -Sorri pra ela, que correspondeu.
O sinal tocou. Entregamos o relatório e saímos dali. Luíza foi-se com Diego, ou seja lá como for o nome dele, seu namorado, para o refeitório e eu sai rumo à biblioteca.
-Lucy, você foi ótima no Artistic ontem. Estava linda. -Ouço alguém dizer atrás de mim, viro-me para ver quem é.
Grandes olhos azuis me encaravam, e meu coração se desdobrou em saudades.
-Phillip! -Exclamei. -Quanto tempo! Se estava lá por que não falou comigo?
-Estava muito cheio e não tive como chegar até atrás do palco para falar com você. -Ele puxa a cadeira colocada ao meu lado e senta-se.
-Entendi. -Falei assentindo com a cabeça. -E é meio ruim nos vermos agora, já que trocaram os blocos.
-Sim, de fato. -Ele riu.
Continuamos a conversar até o sinal tocar e voltarmos às aulas. Phillip era alguém muito legal. Um ótimo amigo, afinal. Ele era um típico londrino, daqueles que adoram chá e tem o sotaque forte.
Ao entrar em casa, coloquei minha bolsa sobre a mesa e fui providenciar algo para almoçar. Comi, lavei e sequei os pratos e fui tomar um banho.
Agora, estava eu, caminhando pelo parque com Lindsay, a cadela de dona Marly, do andar de cima. Senti um olhar profundo cruzar o meu e logo um rubor em minha face. Era o mesmo olhar da noite anterior.
Limitei-me a olhá-lo apenas de relance e comecei a correr com Lindsay. Sentei abaixo de uma árvore e soltei Lindsay, que correu para baixo de uma mesa. Fui atrás dela.
Ao me aproximar da mesa, notei alguém de preto acariciando-a.
-Aqui, Lindsay. -Chamei. O rosto, até então desconhecido, voltou-se para mim e eu soube de quem se tratava.
-Ela é uma cadela bem agitada, não? -A voz ecoou em meus ouvidos, como se um grande muro de aço houvesse sido rompido. Sua voz era grave e macia ao mesmo tempo, clara e limpa, apesar do sotaque, e me fazia entender claramente o que ele dizia.
-Sim. -Limitei-me a dizer. -Vamos, Lindsay.
A cadela me ignorou e deitou-se sobre a grama.
-Bem, acho que ela gostou de mim. -Ele disse e rimos.
Seu olhar pairava sobre mim e eu fingia estar interessada em Lindsay. Eu me sentia completamente invadida, seu olhar carregava inexpressões e suas atitudes mistérios.
-Por que você insiste em ficar me olhando? -Soei mais grossa que o necessário, aquilo estava começando a me irritar.
-Nada. -Ele disse, calmamente, ignorando meu tom de voz. -Você vai sempre ao Artistic?
-Sim. Acho que já o vi lá. -Sentei-me no banco, com seguros 60cm longe dele.
-Não fique agindo como se não houvesse me notado noite passada. -Ele falou. Quase deixei transparecer a minha surpresa com sua resposta, e apenas dei de ombros. Preferi ficar calada, nunca fui muito boa com mentiras e dizer que não o notei seria a maior delas. Afinal, eu o notei. E pensei no seu olhar a manhã inteira. -Meu nome é Matthew, só pra constar. E o seu Lucy, não é?
Ok, outro susto, aquilo era informação demais para um cara cujo só vi uma vez na vida.
-Como sabe? -Perguntei, tentando não soar surpresa.
-Você sabe, as pessoas falam demais. 50 contos e uma promessa de ligação à Keytlin, foi o que me custou para saber seu nome. Você foi cara, garota. -Não sei porque, mas eu ri daquilo. Eu sou meio idiota as vezes e, por isso, chega ser fácil me fazer sorrir.
-Entendo. Ok, Matthew, bom te ver. -Sorri e, mais uma vez, tentei sustentar seu olhar. Em vão. -Vamos Lindsay. -Desviei a atenção para cadela, que veio até perto para que eu colocasse a coleira.
-Bom te ver. Até mais, Lucy. -Sorriu. -Tchau, Lindsay. -Bagunçou os pêlos da cadela e eu segui de volta para casa.

Matthew era o nome dele. Seu rosto sempre inexpressível e seus olhos sobre mim me irritavam, mas, ao mesmo tempo, me intrigavam. Naquela mesma noite escrevi um poema, e estava decidida a recitá-lo sexta-feira.

Poesias de um coração apaixonado.Onde histórias criam vida. Descubra agora