Apenas um Sonho

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O coração ainda batia forte quando ela acordou. A pele estava arrepiada. Foi apenas um sonho. Foi apenas um sonho? Seus dedos deslizaram pelo colchão, enlaçaram o celular sob o travesseiro e o ergueram diante de seus olhos. A luminosidade os queimou por um instante, fazendo-a piscar algumas vezes. Recuperada, conferiu as horas: Três e dezessete da manhã. Os braços caíram sobre seu colo. Quando ela havia se sentado? Mal percebera o mundo ao redor quando seus olhos se abriram. O susto do sonho devia tê-la feito se levantar.

Fitou a escuridão de seu quarto, distinguindo as silhuetas turvas da mobilia. Talvez tivesse sido apenas um sonho. Um daqueles pesadelos que parecem mais reais que a própria realidade. Ela respirou fundo, apreciando o cheiro de caneta esferográfica e livros novos que precedia a volta às aulas. Parecia insano voltar a dormir, mas de um jeito ou de outro teria de estar na escola em poucas horas. Ah! A escola! Seu pequeno reino encantado, ainda mais convidativo depois daquela peça macabra que sua mente havia produzido durante a noite.

Sentiu o coração desacelerar, toda a musculatura do corpo relaxando tão subitamente quanto havia se contraído. Deitou-se e adormeceu. Tão rápido e confortavelmente quanto jamais imaginara e, da mesma forma, acordou com o toque de seu despertador. Era como se tivesse sido tomada pela mais bondosa força do universo e suavemente sido posta para dormir. Com toda a certeza havia sido a melhor noite de sua vida.

Ela se levantava todos os dias bem cedo de manhã. Logo após o Sol, e muitas vezes antes até, brotar dos contornos aleatórios da serra. Vestia um hobe perolado de seda que mal a protegia do frio e, a passos curtos e mansos, ganhava a distancia entre a cama e o guarda-roupa. Não se demorava entre as gavetas. Separava mecanicamente suas roupas. Bocejava. Arrastava-se pelo corredor, lamentando silenciosamente pelo frio, pela hora e pelo sono. Os pés preguiçosos mantinham-se colados ao piso de madeira sem deixar escapar um ruído se quer, levando arrepios ao corpo da menina quando passava a deslizar pelos azulejos de cerâmica do banheiro.

Os olhos esverdeados sonolentos lhe proporcionavam uma visão embaçada e uma fraca dor de cabeça ao se depararem com a luz amarelada que pendia do teto. Acostumada a vista, ela se admirava no espelho. A cada dia gostava mais do que via ali. Sorria. Lavava o rosto perdendo-se por um instante na escuridão e no balançar da água contra sua pele. Escovava os dentes. Tomava um banho rápido e frio. Vestia-se. Abria a porta do armário e tateava em busca de seu estojo de maquiagem. Bocejava.

Voltava ao quarto, com rapidez agora. Calçava os sapatos. Checava a hora. Estava em tempo de se atrasar e sempre se atrasava. Não que se distraísse ou perdesse a hora, simplesmente não se importava de chegar na hora certa, calculava cada uma de suas ações de forma que chegasse no mínimo cinco minutos atrasada. Escovava os cabelos, pendurava a bolsa no ombro e, passando rapidamente pela cozinha, tomava um copo de suco.

Era assim seu pequeno ritual matinal, que lhe garantia o halito fresco, as bochechas rosada e o rímel sobre os seus cílios cumpridos. Entre cremes e perfumes ela desenhava em torno de si uma aura de perfeição tão frágil quanto papel. Porem não foi exatamente isso que ocorreu naquela manhã. Ela já era bonita, sempre fora. Inteligente e carismática também. Apesar de ser gentil, seu coração nunca foi realmente puro. Era bem sucedida em quase tudo que teimava em fazer, mas, nos meses que se seguiram, sua pele se arrepiava cada vez que tinha a sensação de que tudo só podia ficar melhor.

Um cheiro doce invadiu sua inconsciência, despertando-a lenta e prazerosamente. Ela não quis abrir os olhos. Concentrou-se em seu olfato. Era tão gostoso aquele aroma, quase apetitoso, mas não se parecia com nenhuma comida que conhecesse. Inspirou profundamente, desejando que o cheiro preenchesse seus pulmões. Poderia sorvê-lo eternamente e não bastaria. O que poderia cheirar tão bem? Esfregou os olhos e quando, casualmente, respirou perto de seu pulso, descobriu a resposta. Era ela, o perfume vinha de seu próprio corpo. Aquilo era maravilhoso. Como se sua aura tivesse o melhor cheiro do mundo.

O AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora