Como a grande parte dos dias

552 32 2
                                    

Não há sentimentos no interior da aparente mecânica passagem dos dias. Hoje há dor para vários deles, amanhã há alegria demais; em algumas horas é possível passar vergonha demais e logo depois sorrir sem incômodo por semanas. Tudo isso faz com que a vida pareça, em alguns momentos, uma grande piada ou uma grande brincadeira.
Nos dias que se seguiram após a entrada de Taty no consultório nada se agitou demais, pelo menos não externamente. Ela passava a grande parte do tempo conversando com as pessoas que chegavam, que apesar de muitas não careciam de atenção, e quando preciso anotava uma coisa ou outra que mais tarde deveria ser lembrada. Nos movimentos de seu chefe tão admirado ela sentia sempre um quê de desgaste, mas nunca podia compreender de que tipo. Alguns olhares escapavam às vezes e como pequenos feixes fugidios miravam-na. Mas sempre maquinalmente como um desvio de trabalho muito bem contado. A aparente frieza fazia com que o desgaste do homem soasse como causado por ela, mas não podia ser assim, ela quase nunca falava e temia até que sua respiração alta incomodasse. Mas os dias seguiam sem muitas alterações.
Pela manhã, assim que acordava e cumpria o ritual da inscrição no diário, Taty se levantava e descia para tomar café com a família. Parece estranho escrever diários pela manhã, mas sempre que era inquirida quanto a isso dizia: "É preciso remoer, sonhar, re-sonhar acordada para poder escrever". E dessa maneira era sempre aos olhos das pessoas uma garota diferente. Junto com o café da manhã ela era sempre obrigada a tomar, às vezes em doses pequenas às vezes em grandes, a cobrança de seus pais. Eles até que não eram apreensivos demais e nem mesmo daquele tipo de família que só sabe falar como se o próprio filho não tivesse nem voz nem intelecto para decidir, mas estavam em um complexo processo de separação e a filha era sempre um elo, um assunto em comum e uma dispersão dos assuntos anteriores, tão chatos e desgastantes. Acabavam perguntando todos os dias sobre as mesmas coisas: "como está o estágio? ", "como o doutor te trata?"; e esse tipo de coisa padrão. Mas Taty, sempre contando meias verdades ou escondendo a atração que sentia, fazia um relato organizado das pessoas que havia conhecido e dos pacientes que passavam por lá com frequência. Num aceno de cabeça do pai e num beijo da mãe a despedida se escondia, e com a efetivação do ato Taty seguia para mais um dia no consultório, um dia como a grande parte dos outros que já haviam passado.

O OrtopedistaOnde histórias criam vida. Descubra agora