Capítulo 3

3.2K 38 6
                                    

Expressão séria, pensativa, a mãe lia um fax. Ficou um tempão, absorvendo letra por letra. Quando o pai chegou, bem mais tarde, continuava sentada na mesma posição. Joel estava exausto. Cleusa perguntou, com esperança.
-Como foi?
Apenas uma entrevista como tantas outras, ele respondeu. Conseguinda a partir de um anúncio de jornal. O possível chefe examinara seu currículo. Elogiara.
- Terminou com uma conversa mole, dizendo que qualquer coisa telefona. Deu para ver que já escolheu outro candidato - como Joel, desanimado.
Cleusa o estendeu o fax.
- Chegou hoje de tarde.
O pai leu rapidamente. Ao terminar, releu, dessa vez com calma. Trocou um olhar com Cleusa. Chegara o momento de conversar sobre o conteúdo da mensagem. A mulher mandou:
- Dora, André, para o quarto.
- Mas...
- Nem mas nem meio mas. Subam.
No alto da escada, André cometou o óbvio:
- Só pode ser alguma coisa importante.
- Tem jeito - concordou Dora.
O casal começou falando em tom calmo, pausado. Como tantas outras vezes, se alteraram. Dali a pouco, a discussão chegava até o quarto.
- Você não vai -a mãe dizia.
- Ficou cega, surda, muda, a ponto de não entender a nossa situação?
- Podemos ir para Minas, pra casa dos meus pais.
- Viver a sua mãe? Nunca!
- O que é que tem a minha mãe? Foi a única que nos estendeu a mão. A sua só sabe pedir dinheiro emprestado.
- Não precisa atacar minha mãe, que deu duro a vida inteira para criar os filhos.
- Pelo menos na casa do meu pai não vai faltar nada.
- Será que fiz uma faculdade para passar a vida vendendo sombrinha estampada na loja do seu pai? Pra que estudei, lutei? Cleusa, eu estava esperando uma oportunidade! Ela chegou, finalmente! Você não é capaz de compreender?
- Oportunidade? Ir se enfiar no meio da floresta amazônica?
- É uma ótima oportunidade. Você sabe que é! É uma chance de começar numa nova área, numa empresa que está se formando agora!
- E nós, você não pensa em nós?
A discussão continuou a noite toda. Dora e André deitaram tarde. Nem desceram para jantar. Exaltados, os pais também me lembraram de chamá-los. Nenhum dos dois se entendia o motivo da briga. Era um emprego, não era? Dora ainda tentou ter esperanças. Tudo talvez voltasse a ser como antes. O pai compraria outro carro importado. Construíria a mansão. Sim, quem sabe ainda teria um casa com piscina.
Mas por a briga? Dora adormeceu com uma sensação desagradável. Ao descer, de manhã, foi pior ainda. O pai tinha amanhecido no sofá. Notou a roupa amassada. De cara amarrada, a mãe saiu da cozinha, o com leite e o café. Ele se levantou, com jeito de quem não tinha dormido. Surpresa, Dora viu que estava quase na hora da aula.
- Hoje vocês ficam em casa. Precisamos conversar - explicou Cleusa.
Dora de André se entreolharam. A conversa prometia ser horrível. A garota lembrou-se de um livro sobre pais que se separavam. Quando chamavam os filhos para tal conversa, era para comunicado de decisão. Tomou coragem:
-Vocês vão se separar?
A mãe abandonou a cabeça:
- Não seja dramática.
O pai, que fora ao banheiro, voltou de rosto lavado voltou de rosto lavado.Penteado. Olhos vermelhos , expressões preocupada. A conversa começou. Os pais tentavam explicar, mas estavam nervosos e confusos.Dora e André demoraram para entender em resumo: não era uma separação .Ou melhor, era, mas não era. Ou talvez fosse.
Sugira uma proposta de emprego, sim. Numa empresa que estava sendo criada no Amazonas. Inicialmente ele cuidaria da implantação de um centro de armazenamento e extração numa cidadezinha na beira do rio, pendurada na selva. Mais tarde, poderia morar em Belém do Pará.
- O trabalho parece interessante. É uma empresa que exporta plantas e ervas nativas, como o urucum, para fabricação de cosméticos. Precisava de um gerente, um faz tudo que também fosse advogado. Fui escolhido porque conheço bem as leis sobre exportação, graças ao banco.
-Vamos morar no meio dos Índios?
- Bem que eu morar com os índios - disse André. Podia andar pelado o dia todo!
- Fica quieto, porco! - irritou-se Dora. - Se você for pra floresta, vai virar comida de jibóia.
Em outra ocasião, os pais até ririam da briga. Dessa vez não acharam graça alguma. Com voz pausada, Joel explicou que seus conhecimentos sobre a floresta amazônica e os índios deixavam muito a desejar. Mesmo nas aldeias, índios não andavam peladas. Tribos mais primitivas, sem contato com os brancos, talvez ainda existissem. Mas esta era outra história.
- O que importa é que não vamos pro seu pai - explicou Cleusa.
Então era isso! Cleusa e Joel tentaram ser lógicos. Seria apenas um contrato de experiência. Joel conhecia exportação, mas nunca trabalhara na área. Talvez tivesse recebido a proposta porque poucos advogados aceitariam o cargo. Mudaria de vida, por um salário bem mais baixo do que tinha antes.
- Fui indicado por uma agência de empregos. Quando fiz a entrevista, não me disseram o que era, exatamente.
Joel também não conhecia a cidade onde iria viver. Os problemas que teria de enfrentar. Parecia lógico que fosse sozinho, pelo menos inicialmente. Tudo isso, porém, era apenas meia verdade. Ele Cleusa não teriam discutido a noite toda se fosse tão lógico. André tomou coragem:
- Mas vocês estão brigando, não estão?
A mãe suspirou.
- Não é exatamente uma briga. Eu e seu pai precisamos dar um tempo. Pensar. Vocês vão ter que compreender. Eu acho... sabem, eu acho que a falta de dinheiro fez certos problemas que estavam escondidas aparecerem.
A xícara de café com leite foi sumindo da vista de Dora. O mundo girava. Quase caiu para trás. Sentiu o braço do pai.
- Não chore, filhinha. Sempre vou falar com você.
Pais e mães tomam decisões capazes de mudar toda a vida dos filhos. Na maioria das vezes, no caso dela, não se podia dar palpite. Ah, que vontade de ter idade suficiente para não depender de ninguém. Arrumar seu próprio emprego!
Apesar de tudo, o pai parecia aliviado.
- Tudo está se encaixando- ele explicou.
Alguns dias antes, um comprador se interessara pelo terreno em Alphaville. Queria dar um apartamento pequeno e uma quantia em dinheiro, para completar. Joel recusara. Pensava em vender o terreno à vista para abrir um negócio próprio. Agora proposta tornava-se bem atraente. O apartamento viria a calhar.
- Vocês mudam para lá. Nos livramos do aluguel. O dinheiro da diferença ajudará a manter a casa nos primeiros meses. Aí, passo a mandar parte do salário. Sua mãe também acaba arrumando alguma coisa. Tudo vai se ajeitar.
Nós dias seguintes, Dora passou a maior parte do tempo no quarto. Era horrível se sentir inútil. Incapaz de ajudar. Uma vez decidido, Joel e Cleusa apressaram-se. A mudança coincidiu com o final das aulas. Ele partiu um mês antes para trabalhar na Amazônia. Com a venda do terreno, Cleusa acertou as mensalidades atrasadas do colégio. Mandou pintar o apartamento. Tudo aconteceu rapidamente.
Quando Dora foi conhecer o apartamento, teve um choque. Era na periferia. Não que fosse um bairro miserável. Era um bairro repleto de sobradinhos geminados com garagem com portão de ferro e um carro velho dentro. Mais adiante, um grande conjunto habitacional popular. Em torno, umas casas bem pobrezinhas, algumas só com reboco, sem pintura. Aqui e ali, alguns condomínios de prédios grandes, gradeadas. O apartamento eu ficava num desses condomínios, com quatro edifícios. Havia um jardim, uma guarita com porteiro e uma vaga na garagem subterrânea. Só havia uma casa bonita, na opinião de Dora. Era um sobrado de esquina, coberto de pastilhas coloridas e pedras vermelhas. Dora odiou o bairro.
Na escola, quando souberam que ia se mudar, quiseram saber para onde. Dora tentou esconder, mas descobriram. André havia contado para todos colegas, e um menino revelou para irmã, da classe de Dora.
- Vila Cantareira, nunca ouvi falar - comentou Magda, nariz torcido.
Dora quis se enfiar no chão. Sentiu o olhar de desdém da outra.
Passaram o Natal em Minas. A avó reclamava.
- Deviam ter vindo para cá, como eu disse!
A mãe dele tava discutir o assunto.
Os presentes foram péssimos. Da mãe, Dora ganhou um CD. Ela, que sonhava com a viagem à Disney! A avó tinha mania de dar presentes úteis, mas seu gosto era completamente diferente do da neta. Dessa vez, apareceu com uma saia pregueada, verdadeira peça de museu. Dora odiou. Cleusa exigiu que usasse, para não fazer desfeita.
- Adorei, vovó - teve que dizer.
De volta a São Paulo, mudaram-se para o apartamento. Dora passou o dia emburrada. Nem te ligar para as amigas. Nem telefone tinha! Os primeiros dias no apartamento foram cheios de angústia. Tinha horror de olhar pela janela, observar as ruas malcalçadas. André, sempre otimista, também andava de farol baixo.
- Eu soube que sábado passado, no bar da outra quadra, teve até tiro.
- Quem contou?
- O porteiro. Diz que é perigoso sair depois que escurece.
Sentia-se presa no quartinho minúsculo. Depois de colacada na cama, mal dava para abrir a porta. Uma diferença enorme meu quarto anterior. Um abismo em relação a seu sonho de ter uma suíte com banheira de hidromassagem. Embora fosse uma sorte ainda tem seu próprio quarto, segundo a mãe.
E a saudade do pai?
- Vocês se separaram só por causa do dinheiro?
Cleusa refletiu. Também não entendia como as coisas degringolaram daquele jeito.
- Eu não sei o que deu errado, Dorinha. Acho que eu e seu pai passamos muito tempo só pensando em dinheiro, dinheiro e dinheiro. Quando faltou o dinheiro, deu um vazio. Não sei como explicar.
- Mas vocês vão voltar, não vão?
- Quem sabe? Eu mesma não sei o que pode acontecer.
A vida tomou um novo rumo. Apesar da fila imensa, Cleusa conseguiu matrícula para os filhos numa escola da rede pública. Por ser perto do condomínio, ambos poderiam ir a pé.
- De hoje em diante, viveremos de outra maneira.
As obrigações domésticas se tornaram definitivas. Nem pensar em empregada. Dora tornou-se responsável pelo almoço, deveria esquentar a comida por a mesa e lavar os pratos. André arrumaria as camas. No sábado seria a faxina geral. Cleusa logo começou a procurar emprego.
Até o início das aulas, Dora mal saía de casa. Ia só até o jardim do prédio e voltava. Sem telefone ficava mais difícil procurar amigas de antes. Um dia tentou ligar para Magda do orelhão. Esta estranho:
- Como é que alguém pode não ter telefone?
Dizer o quê? Certas coisas que pareciam normais, na verdade eu estava muito caro. Mas, com todo o dinheiro do pai, na vida nunca seria capaz de entender. Apesar da má criação da amiga, sentia saudades. Antes, trocaram confidências, emoções. Queria tanto revê-la! No final do telefonema, Magda convidou Dora para tomar banho de piscina.
Cleusa proibiu.
- É muito longe.
- Mãe, você me leva.
Cleusa conservara seu carro, última lembrança dos bons tempos. Recusou-se.
- Dorinha, sei que não é fácil se acostumar. Mas não posso continuar a ser seu motorista. Preciso achar emprego.
- Deixa eu ir de ônibus!
- Gastar dinheiro com a condução, à toa? Não, não e não! faça novas amizades, aqui no bairro.
Tornou-se impossível visitar as amigas. No íntimo, Cleusa acreditava está fazendo o melhor para a filha. Dora devia se acostumar aos novos colegas e ao novo bairro. Não imaginava o quanto Dora se sentia desprotegida, perdida e solitária. Não queria fazer amigos naquele bairro de periferia. Sonhava com as casas de suas amigas ricas. Como se a vida anterior fosse um conto de fadas, do qual tivesse sido expulsa. Não conseguia entender como André adaptava-se tão depressa àquela vida. Apesar do choque inicial, ele logo começou a fazer amigos. A jogar bola num campinho próximo.
Dali a algum tempo, Cleusa tornou-se corretora numa pequena imobiliária. Sem ganho fixo, dependia de comissão.
- Se conseguir alugar ou vender algum apartamento, posso até ganhar bem - explicou aos filhos.
Dora queria que o mundo explodisse.
Também não gostou da nova turma da escola. Foi péssimo chegar a um lugar onde não conhecia ninguém. Pior, nem queria conhecer. Surpreendeu-se na entrada, ao ver André já enturmado batendo papo com uns meninos. Sua atitude foi outra. Sentou-se no fim da fileira. Crítica, rodou os olhos pela turma. Presilhas de plástico baratinhas nos cabelos das colegas. Alguns garotos tinham tênis encardidos, bem velhos. Um aluno estava de camiseta regata. Tinha uma tatuagem de dragão no bíceps e cabelos compridos cacheados, bem despenteados. Fixou o olhar na tatuagem. Quando ergueu o rosto, percebeu que ele encarava. Sorria. Virou de lado fazendo questão de demonstrar que não ligava para ele.
No intervalo, ficou num canto. Não pretendia puxar conversa com ninguém. Duas meninas vieram bater papo. Perguntaram quem era, de onde vinha. Evitou responder
Não queria saber de fofoca. O que queriam, afinal? Nem em sonhos falaria sobre os problemas da família. Uma elogiou o relógio.
- Ganhei do meu pai.
- Ele deve ser montado na grana - comentou a garota.
Silenciou. As meninas desistiram de puxar conversa. Assim que elas saíram, o garoto tatuagem aproximou-se.
- Você é nova, é? Qual seu nome?
- Dora.
- Eu sou o Teo. Mas o povo me chama de Tigre.
Nem respondeu. Acho Tigre simplesmente ridículo. Parecia mais um gato vira-lata, com os olhos puxadinhos e a juba despenteada.
- Quer um conselho? Não vem com esse relógio não.á muito na vista.
Não gostou. E se ele estivesse alertando para depois meter a mão sem despertar suspeitas?
- Pode deixar eu tomo conta.
Percebendo a frieza, Tigre afastou-se. Terminada a aula, foi diretamente para casa. Emburrada. Ficou ouvindo música. Estava quase adormecida quando ouviu a porta bater. André acabava de entrar, com a camiseta rasgada, e o rosto arranhado. Descalço.
- Roubaram meu tênis.
Contou, assustado. Fora visitar um colega de classe. Um amigo que fizeram no bairro r logo após a mudança. De volta, na virada da esquina, foi cercado por três marmanjões. Perdeu o tênis.
Até a mãe, que vivia fazendo cara de contente dizendo que o bairro era ótimo, dessa vez não teve forças para disfarçar. Quase chorou.
- Será que a gente devia ter ido pra Minas, com meus pais? Será?
André mostrou que tinha uma personalidade forte.
- Deixa pra lá, mãe. Eu é quem dei mole, saindo com um tênis daqueles. De amanhã em diante, cuido mais.
Antes de sair, no dia seguinte, Dora hesitou, com relógio na mão. Resolveu deixar em casa. Depois pensou no tal de tigre. Quem sabe ele tivesse Boa intenção.
Dora odiava o bairro, mas não podia fugir.Quis se acostumar com a nova vida. Fez um esforço. Começou a bater papo com as colegas. Era difícil. Elas gostavam de outro tipo de música. De roupa. Chegou a ir na casa de uma das novas amigas, fazer um trabalho de escola. A mãe fazia salgadinhos para fora. A casa toda cheirava a fritura. Comeu coxinhas, empadinhas.Deliciosas. Elogiou.
- Um dia gente vai ter um restaurante! - confidenciou a colega.
A humildade da casa a constrangia. Mesmo sem querer comparou com a Magda. Os jardins, a piscina, as salas gigantescas, uma se sucedendo após a outra. Nada a ver com aquela casa de periferia, com cheiro de óleo penetrado nas paredes. Seus olhos se fixaram no sofá. Havia rasgão. Não queria olhar, sabia que era falta de educação. Mas seus olhos se fixaram na espuma saindo de dentro. A mãe da amiga percebeu, ficou sem jeito.
- É... o sofá anda precisando de uma capa nova.
Ganhou fama de reparar demais. De fresca. Nunca mais foi convidada a voltar naquela casa. Passou a ser evitada. Só a chamavam quando havia trabalho de grupo, obrigatório.
Quem insistia era Tigre. Puxava papo. Dora tinha horror, cada vez que ele se aproximava. Era óbvio, estava afim. Não que Dora não o achaesse simpático, interessante. Um gato. Mas era filho de um mecânico, ajudava a consertar os carros. Ás vezes, aparecia com a calça manchada de graxa, o que as colegas consideravam charme. Diziam que era sortuda, porque o Tigre parecia se interessar por ela.
- Pois faça bom proveito. Não estou nem aí.
Nem pensar! Um pobretão! Passava todo o tempo livre sozinha. Lembrando de antes. Do pai. Chorava, às vezes.
Poderia ter continuado assim muito tempo. Triste. Longe de todos. Tudo o que fazia parte de sua vida, até poucos meses atrás, tinha desaparecido. Seus desejos, seus sonhos suas ambições. Quando pensava no futuro, sentia só desânimo.
Até que se apaixonou.

Vida de DrogaOnde histórias criam vida. Descubra agora