Capítulo 2

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     O pai chegou em casa mas cedo. Quando ouviu o carro na garagem, Dora estranhou. Desceu as década correndo. Queria mostrar uma pulseira de lã trançada. Fizera igualzinha ao desenho de um livro. Surpreendeu-se.
      -Papai estava com cara de guarda chuva fechado- contaria mais tarde ao irmão.
     Parecia doente. Ia falar, mas Cleusa entrou logo atrás. Por coincidência, chegara das compras do shopping praticamente ao mesmo tempo. Assustou-se :
-Em casa, já?
-É.
     Aquele é tinha um tom horrível. Cleusa e Joel se olharam. Ela fez um final com a cabeça.
   -Dorinha, sobe. Eu e seu pai precisamos conversar.
   Ficou com uma raiva danada. Odiava quando mandavam subir, como se não fosse capaz de entender. Botou a orelhas em alerta. Falavam baixinho, a voz dele tinha um tom estranho, Como se houvesse uma lixa na garganta. No jantar, continou se saber o que estava acontecendo. Nenhum dos dois comentou sobre o problema. André também sentiu o clima.
  -Tem coisas acontecendo.
   Embora mais  novo, o irmão tinha jeito para entender os pais dessa vez, nem ele conseguia decifrar o que estava acontecendo.
    -Nunca vi os dois assim- comentou.
   Durante alguns, dias nem pai nem a mãe se abriram. Dora só descobriu a verdade por causa da excursão. Foi uma promoção que surgiu na escola. Viajem para a Disney nas férias.
    Um rapaz da agência de turismo foi de classe em classe. Distribuiu uns folhetos super legais, repletos de fotos coloridas. O guia seria um ator de novelas, do qual Dora era fã.
Apesar de ser a Disney, não era uma excursão para crianças. Haveria uma boa programação, com idas a casas noturnas e shows. Decidiu pedir a viagem como presente de natal. Estava certa de ir. Muitas amigas estariam na excursão. Várias já conheciam a Disney, e até Paris e Londres. Uma fora até o Canadá com q mãe, mas odiou porque era muito frio. Dora se sentia por fora quando falavam em viagens. Desta vez, era sua oportunidade.
     Mal entrou em casa, tirou os folhetos da mochila. Botou na mesa. Falou da viagem, animada.
-Olha, mãe, este aqui é o hotel.
     Cleusa nem pegou a papelada. Ficou em silêncio. Respirou fundo:
-Não vai dar, minha filha.
  Ficou furiosa. Como, não ia dar? Tinha sido ótima aluna, bem que merecia um super presente de natal. Além disso, o que diriam às amigas? O que diria Magda, se não fosse? Insistiu:
-Ah, mãe, eu quero, eu quero!
-Fica quieta, Dora! Será que não entende o que está acontecendo?
Como entender, que ninguém contou?
-Fala, mãe. Por que eu não posso ir?
    Finalmente, a mãe confessou, como se falasse de uma vergonha:
  -Precisamos economizar.
  -A viagem é baratinha!
  -Não vai dar, Dora. Seu pai foi despedido.
   Foi um choque. Os chefes não gostavam dele. Não convidavam para ir a churrascos nas mansões? Agora estava cumprido aviso prévio. Parecia impossível. Os pais e alguns colegas de classe também haviam perdido o emprego. Alguns nem pagavam mais a mensalidade.  Duas meninas haviam saído no meio do ano. Mas isso não podia acontecer com seu pai!
   -O banco passou por problemas sérios. Foi comprado por outro banco estrangeiro. Muita gente está saindo.
   Teve calafrio. Lembrou-se de conversas que ouvia na escola. O tio de uma amiga, estava havia cinco anos sem arrumar emprego. Acabou vendendo a casa para montar um negócio.
  -O pai acha outro emprego logo, não acha?
  A mãe abraçou-a. Tinha a mania de abraçar quando estava preocupada. Cleusa falou num tom esquisito, como se não tivesse certeza do que dizia.
-Claro filha, é só uma fase.
   Nas semanas seguintes,  começou a entender certas conversas de seus pais. Frases perdidas, que antes nem merecia muita atenção. Foi formando um quadro. Parecia que na área, dele muita gente procurava emprego.  Muitos aceitavam salários mais baixos. Um conhecido, depois de um ano batendo de porta em porta, comprou um táxi.  Apavorou-se ao ouvir a mãe espantada:
   -Com diploma universitário e dirigindo táxi.
     André também sabia de histórias parecidas. O pai de um amigo havia vendido tudo para pagar dívidas.
   -Ele saiu da escola antes de terminar o ano. Está ajudando o pai a vender cachorro-quente na perua parada na esquina.
    -Que horror!-espantou-se Dora. -Imagine, ficar o dia todo de pé, botando salsicha no meio do pão!
   Teve ódio quando André comentou, como se fosse a coisa mais natural do mundo:
  -Se o pai vendessse o carrão, podia comprar duas peruas. Eu ajudar numa e você na outra. Dava para comer hot dog até sair pelas orelhas! Soube de um sujeito nos Estados Unidos que começou vendendo hot dog e hoje é milionário!
    Ah, que vontade de dar um tapa!
    -Guloso! Tomara que você se afogue numa banheira cheia de maionese e catchup! Nuncaquero passar por essa humilhação!
  - Girafa! Você parece aquela girafa do zoológico de tão metida! Sempre de pescoço pra cima!
     Deu mais raiva ainda. Odiava  ser chamada de girafa por ser alta e pescoçuda, preferia que dissessem que parecia um Cisne.
  -Porco, porco guloso!
  -Porca é você, que deixa a cama desarrumada.
    André tinha horror de ser chamado de porco. Sempre foram muito gordinho, com a cara bem redonda. O nariz até parecer um focinho. Mas, no caso da cama, não estava mentindo. Dora só arrumava quando a mae exigia. Ele, ao contrario, mantia o quarto bem organizado. Um puxa-saco da mãe, na opinião de Dora. Apesar da raiva, conseguiu se controlar. Queria continuar a conversa. Sobretudo, impedir que ele desce essa ideia maluca ao pai.
-E se minhas amigas  vissem você e o pai vendendo hot dog,  André? O que é Magda ia falar?
   -E eu com a Magda? O pai dela vende chocolate, o que vender hot dog?
    Impossível argumentar com irmão. Não dava pra entender a cabeça dele. Depois sozinha na cama, refletiu. Era exagero, certamente. O pai tinha um terreno, o carro... não eram pobres. Não seria preciso vender hot dog? Ele encontraria um novo emprego. Até melhor.
     O aviso prévio acabou. Dora estranhava ver o pai no café da manhã ainda de pijama. Pai e filha se encaravam desconfortáveis. Joel abria o jornal. Fingia sossego. Semana após semana, recortar anúncios. Passava horas no computador, montando currículos. Cleusa deixar de passear no shopping. Dois meses depois, despediu a empregada. Ficou com uma faxineira três vezes por semana. No outro mês, desistiu da faxineira. Pediu que Dora e André ajudassem na limpeza da casa. Dora sempre tentava fugir dos pratos.
    - Depois eu lavo.
    - Deixa de história, vá lavar  agora!
    O pior que é André  divertido lavar os pratos. A mãe apontava:
     - Olha o exemplo do seu irmão.
     Era difícil acreditar que não conseguiam mais pagar empregada. Só teve noção gravidade das coisas no dia da briga por causa do telefone. A avó materna ligava todos os dias, a cobrar. Conversava horas e horas. Naquele mês, quando chegou à conta, o pai conferiu com a caneta. Depois, mostrou:
     - Cleusa, a conta está alta demais. Muito interurbano.
   Quatro meses antes ele nem ligava. A mãe não falou. Gemeu:
   - Como vou dizer para minha mãe?
    Primeira vez, os pais discutiram feio. Joel teimou. Os interurbanos deviam acabar.
     No dia seguinte, ouviu a mãe falar constrangida para avó:
     - Se a senhora não ligasse a cobrar..  o Joel...
    Houve uma pausa. A avó devia está fazendo perguntas, do outro lado da linha. Subitamente,Cleusa começou a falar e falar. As lágrimas rolando, rolando. Falou da situação financeira cada vez mais difícil. O dinheiro escorrendo pelos dedos, com tantas despesas. Dois carros, a escola...
    -  O André precisa de um tênis novo, a senhora nem sabe quanto custa!   - ela se lamentava.
     Quando o telefonema terminou, Cleusa sentou-se à mesa o olhar vazio. Nunca mais esquecer os olhos da mãe naquele dia, como se o mundo tivesse desabado.
     A briga por causa da conta de telefone foi o Estopim de muitas outras. A falta de dinheiro deixa todos nervosos. Joel e Cleusa parecendo gato e cachorro. Com frequência, ela ouvia a mãe  falando como se culpar seu pai:
      - Muita gente anda conseguindo emprego. Você que não se esforça.
     - Como não me esforço? Você não tem o direito de dizer isso!
      Começava a discussão.
      O dinheiro acabou totalmente em seis meses. Um dia, ligaram do banco. Era preciso cobrir dois cheques. Até o limite do cheque especial esgotara. Foi um sufoco. O pai pegou emprestado de um amigo. No dia seguinte, vendeu carro importado.
      - Como você pode entregar o carro daqueles por uma miséria?-assustou-se a mãe.
       - É o que pagam. Desvaloriza muito depressa.
  - Você que não soube procurar. O marido de uma amiga minha, vendeu muito melhor que um carro do mesmo ano.
    O pai respondia. Nova briga.
   Com tempo Dora e  André acostumaram-se a subir e ficar jogando, enquanto lá embaixo as vozes subiam e abaixavam no ritmo já conhecido. Em três semanas, os irmãos perceberam que o dinheiro do carro também estava acabando.
    -Como a gente vai viver de agora em diante?-assustou-se Dora.
     Avó materna tentou ajudar.  Continuava ligando, sem ser a cobrar. Cleusa propôs, certa noite:
     -Minha mãe disse que podemos ir para casa dela.
     -Não quero mudar para aquele fim de mundo Fique quieta você não dá palpiteavó materna tentou ajudar continuava ligando sem ser a cobrar Cleusa propôs certa noite minha mãe disse que podemos ir para casa dela não quero mudar para aquele fim de mundo! - gritou Dora.
   - Fique quieta, você não dá palpite.
   - Pois dessa vez a Dorinha falou que é certo - defendeu o pai.- Nós não vamos para a casa da sua mãe. Ela nunca gostou de mim.
  - Prefere passar fome em São Paulo?
  - Não estamos passando fome.
  - Já estamos raspando o fundo do tacho. Onde vamos arrumar dinheiro?
   Joel tinha outras razões para recusar ajuda.
    - Se eu for embora daqui, sem emprego, nunca mais arrumo coisa boa.
    -Pelo que eu sei, você não arruma nem coisa ruim
  - Não precisa me humilhar.
   - Só estou tentando resolver a situação.
   O bate boca começou. Dora e André haviam descoberto que, nesses momentos, o melhor era ficarem calados.
   Cleusa também procurava emprego. Recortar anúncios. Fazia entrevistas. Nada. Dora ouviu quando ela desabafou com uma amiga:
   - Não me quer e nem para recepcionista! Dizem que passei da idade.
   - Você, tão moça, nem dá para acreditar!
      A mãe continuava, a voz triste, horrível de se ouvir.
     - Eu podia ter uma carteira. Ser capaz de segurar as pontas numa crise dessas. Larguei emprego e faculdade. Agora ficou mais difícil.
     As amigas já sabiam da situação de Dora.
    - Faz tempo que eu sei que seu pai está desempregado?
    Tomou coragem. Magda era tão amiga! O pai dela poderia ajudar, afinal era dono de uma das principais empresas do país. Como não tiver a idéia antes? No intervalo, chamou a amiga num canto.
   -Será que atrapalha arrumar emprego pro meu?
    Magda mediu com os olhos. Respondeu, fria:
    - Sei lá... isso não é comigo. Tem tanta gente procurando emprego, o meu pai vive falando que é um inferno.
   Dora observou a corrente de ouro que Magda trazia no pescoço, com coraçãozinho de ouro e rubi na ponta. Antiga, herdada da família. Sentiu uma enorme revolta. Um gesto do pai da amiga poderia resolver tudo! Dias depois, uma menina que nem conhecia direito comentou:
   - Eu não sabia que você era pobre.
    Rubra, Dora nem conseguiu responder. Era horrível ouvir aquela palavra: pobre! Parecia defeito! Correu para o banheiro. Chorou em silêncio.
   E seu pai no carro mas emprego? Iria vender hot dog na esquina? Ela, Dora, deixaria de estudar para passar o dia todo de pé, botando maionese no meio do pão, catando salsicha na água quente, espirrando mostarda no catchup? Magda e todas as amigas passariam de carro. Ririam dela.
A família já estava no limite. Desesperada, Dora não sabia que podia acontecer.
     Mas tudo mudou novamente. Exatamente sete meses depois que o pai perdeu emprego, surgiu uma solução.
     Uma solução capaz de modificar ainda mais a vida de sua família.

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