Capítulo 5

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Gui não apareceu no dia seguinte. Nem no outro. Dora virou um feixe de nervos. Falou com Emília, que sorriu:
- Conheço meu primo se estiver mesmo a fim, aparece.
Foi o que aconteceu. Três dias depois. Quando chegou da aula, ele estava em frente ao prédio.
- Topa um passeio de moto?
Aceitou na hora. Deixou a mochila com Emília. Perguntou por que havia demorado tanto tempo para aparecer. Ele ficou meio sem jeito.
- Fiquei com medo de você me dispensar.
Então, os dois tinham os mesmos medos! Foram tomar um sorvete. Na mesa ele pegou de leve na sua mão. Gostou. Ele era assim, cheio de toques carinhosos. Quase morreu de emoção quando ele disse, meio tímido:
- Sabe... eu curto você. Quero ficar junto.
Foi essa a declaração de amor. Dora adorou. Mais tarde, Gui parou a moto numa pequena praça. Acendeu um baseado. Ela sorriu, aceitou. Fumaram depressa, com medo da polícia.
Passaram a se ver todos os dias.
Adorava ficar com ele. Parecia que a conversa não acabava nunca. Saíam juntos. Inicialmente, só nos fins de semana. Emília sempre ia junto, com o namorado. A mãe ficava aliviada por ver Dora mais alegre, fazendo amigos. Além dos problemas financeiros, Cleusa se preocupava com a separação do casal. Joel já não ligava com frequência.
- Estou sozinha - pensava Cleusa. - O melhor é tocar a vida. Cuidar dos meus filhos.
Embora tivesse horário para voltar - Emília também tinha -, Dora ganhou uma certa liberdade. Cleusa dava até um dinheirinho para o cinema, o barzinho. Só exigiu que não tomasse nada alcoólico.
- Mãe, eu não suporto álcool!
Gui tinha muitos amigos. No grupo, Dora passou a ser a mais nova. Emília, apenas um ano mais velha, gostava de se dar ares de adulta. A maioria dos rapazes, como Gui, tinha moto. Todos estudavam. O namorado de Emília tinha entrado na faculdade de Medicina sem nem fazer cursinho. A maioria da turma ia bem na escola. Quando revelou que andava mal em algumas matérias, Dora foi motivo de piada. Teve mais estímulo para estudar. Algumas tardes, ia para o apartamento de Emília rever as matérias. Junto dos novos amigos, logo deixou de pensar na turma da escola rica. Sentia saudades de Magda. Mas, a maior parte foi tempo, só sabia pensar em Gui.
Tinha colocado o rapaz num pedestal, como se fosse o homem mais perfeito do mundo. Por isso, ficou superirrtada quando Tigre veio falar com ela, num intervalo das aulas.
- O Gui e você estão saindo?
- É... acho que sim. Mas isso não é problema seu.
- Toma cuidado. Ele é o maior maconheiro do pedaço
Ficou furiosa. Como Tigre se achava no direito de falar de Gui?
- Você ta com dor-de-cotovelo.
Tigre balançou a cabeça, decepcionado.
- Como você é boba!
Deu as costas para ele, imediatamente. Saiu andando. Deixou o rapaz completamente sem jeito.
Os fins de semana não bastavam. Gui e Dora passaram a se encontrar todas asa tardes. Não faziam nada de especial. Às vezes iam para a casa dele. Ouviam música no quarto, ficavam abraçados. Fumavam baseados. Gui acendia incenso para disfarçar o cheiro. A mãe acreditava que ele fazia meditação. Uma vez, pedira até para mostrar como era. Gui sentara de pernas cruzadas, uma sobre a outra. Como um guru indiano. Morria de rir, contando.
- A mãe acreditou!
Aos poucos, Dora foi abandonando as responsabilidades da casa. Era encarregada de arrumar as camas e esquentar o almoço. Descuidava-se. Às vezes fazia, as vezes não. André passou a esquentar a própria comida. Frequentemente, ela comia na casa de Gui. Sempre ouvia piadas sobre a chatice das sogras, mas a mãe dele era ótima. Quando Dora falava de uma receita que gostava, fazia questão de pôr na mesa. André reclamava.
- Eu faço minha parte e você não faz a sua.
No começo, Dora ficava sem jeito. Ia arrumar a cama. Ou até fazia um doce de banana com açúcar de que o irmão gostava. Mas começou a ficar irritada com as cobranças. Queria passar o tempo todo com Gui. Preferia comer feijão com arroz frio a perder tempo no fogão. O irmão discutia. Ameaçou contar para a mãe.
- Dedo- duro! - Dora acusou.
A principal razão para abandonar o serviço de casa era a vontade de ficar com Gui. Além disso, quando fumava, dava uma leseira... uma vontade de não fazer nada. André não teve coragem de falar para Cleusa. Quis evitar a briga. Muitas vezes, ele também comia na casa de colegas. Quem entrasse no apartamento ficaria admirado. O quarto do menino, sempre arrumado. Impecável. O de Dora, uma bagunça. Cleusa percebia. Mas a filha já tinha sofrido tanto! O pai, na Amazônia, não mandava nem carta. Segurou o quanto pôde. Ao ver uma pilha de pratos imundos na pia, estourou.
- Dora, a casa está uma vergonha!
- Ah, mãe, eu não quero passar a vida toda trabalhando como doméstica!
A briga foi feia. O nome de Gui acabou aparecendo na conversa.
- É meu namorado. Pensei que você já sabia. A gente sempre sai junto!
- Namorado? Eu... certa de que era só amizade! Como sou tonta!
Cleusa não podia imaginar que a filha já estivesse com alguém. Pensou que apenas saia com amigos.
- Você não tem idade!
Dora teimou. Tinha idade sim. Cleusa se acalmou um pouco quando soube que era o primo da Emília. O filho do dentista do sobrado de pastilhas. Quis conhecê-lo. Combinaram o encontro para o fim de semana. O rapaz apareceu com uma maço de flores. Só de vê-las, Cleusa amoleceu. Fez questão de que almoçasse. Gui ajudou a lavar a louça. Falou de seus planos para o futuro. Jogar basquete, fazer Educação Física.
- Só prometam não aprontar nenhuma besteira - pediu Cleusa.
Ambos juraram que não. Nisso, Dora concordava com a mãe. Não tinha a menor intenção de ultrapassar certos limites. Cleusa se tranquilizou. Com seu jeito calmo, doce, Gui a conquistara. Dora prometeu voltar a arrumar as camas, cuidar do almoço. Quando ela saia com Gui de moto, Cleusa estava calma.
Mais tarde, refletiu. Dora estava abrindo as asas muito depressa. Talvez fosse melhor largar o emprego, ficar perto dos filhos. Não estava ganhando tanto, afinal. A renda de uma corretora é instável. O pouco, porém, faria falta. Joel começara a mandar alguma coisa. Não muito, seu salário não era alto. Com a separação se tornando definitiva, também havia possibilidade de todos se mudarem para Belém. Precisava trabalhar teria que confiar em Dora.
Cleusa morria de medo de uma gravidez adolescente. Na tarde seguinte sentou-se no quarto com a filha. Falou sobre sexo. Sobre os riscos de uma gravidez prematura
Quase caiu para tráz. Dora conhecia tanto quanto ela.
- Nós tivemos aulas na outra escola. As meninas também sabem muita coisa e me explicaram como é.
Percebeu que Dora, nesse aspecto, tinha bastante consciência.
- Prometa sempre me contar tudo!
Cleusa sorriu quando a filha fez que sim. Dora garantiu.
- Eu e o Gui não chegamos a esse ponto. Nem quero chegar.
Quando Dora saiu, Cleusa observou o encontro dos dois diante da moto.
- É um casal tão bonitinho! - pensou orgulhosa. E Dora estava tão feliz! O namoro fazia bem, concluiu.
Em realçada sexo, Cleusa não tinha por que se preocupar. Dora e Gui ficavam juntos. Mas restringiam-se a beijos, muitos beijos. Somente alguns abraços eram mais ousados. Dora chegava cedo em casa, como combinara com a mãe. Os amigos brincavam.
- Está na hora de ir tomar a mamadeira!
Fingia ficar brava. Mas ria.
Ela é Gui puxavam fumo sempre. A dois ou em grupo. Quando um não tinha, outro aparecia com a presença. Dividiam os cigarros. Faziam esforços para não serem notados quando fumavam nas ruas ou pracinhas solitárias. Também gostavam de ir ao apartamento de Naldo. Era um amigo de Gui, que morava sozinho com um primo. Ambos eram do interior.
O apartamento era muito confortável. Bem montado, com dois quartos. À primeira vista parecia abrigar uma família comum. Sofás, mesas, quadros tenho sido escolhidos pela mãe de um deles. Haviam espelhos, cadeiras laqueadas, aparadores. Sofá adamascado. Os primos tinham dado um toque diferente, enchendo as paredes de pôsteres, abandonando sapatos e meias embaixo da mesa de jantar e bituca de cigarro por todos os lados.
Naldo tinha certa admiração por Dora. Dizia que era bonita. Em poucos anos, seria de arrasar. Bastaria perder o ar de adolescente.
- Aí eu boto esse Gui pra correr - dizia Naldo.
Dora gostava de ouvir o elogio. Se não fosse Gui, bem que se interessaria por Naldo! Era um rapaz magro, de cabelos encaracolados. Pele azeitonada e olhos negros bem expressivos. Andava sempre de jeans e camiseta. Bem mais velho que Gui. Bonito e charmoso, com um sorriso sempre aberto no rosto de traços finos.
Fumavam baseados juntos. Riam muito. Divertiam-se. Como se o baseado garantisse a união do grupo. Uma forma de contato fraternal. Dali a uns dois ou três meses, surgiu uma novidade. A branca. Naldo foi o primeiro a experimentar, numa festa. Contou que era incrível.
- Pensei que ia sair voando!
Dora sentia medo. Cocaína era tabu. Desde pequena, ouvira histórias horríveis. A mãe comentara sobre um colega da Universidade, viciado, do qual todos se afastavam. Também lera sobre a droga em revistas. Mas, no fundo, acreditava não haver motivos para preocupação. Sabia se controlar. Certa noite, quando estava no apartamento dos primos, Naldo falou baixinho em seu ouvido.
- Disfarça e vai lá pro quarto. O Gui também vai. Mas não tem pra todo mundo.
Ficou curiosa. O que seria? Também sentiu uma ponta de Orgulho. Confiavam nela. Tinha sido chamada para algo especial. Foi saindo da conversa. Levantou-se. Entrou no quarto. Gui, os dois primos, Emília, seu namorado é mais duas garotas estavam reunidos em volta de uma mesa de vidro. Naldo espalhava um pó branco sobre o tampo. Acendeu o isqueiro embaixo do vidro, aqueceu. Distribuiu em carreiras, com uma gilete. Tirou o bico de uma esferográfica. Com o plástico transformada em canudo, aspirou uma carreira.
Estática, Dora ficou parada na porta. Horrorizou-se. Diante dela, as carreiras de cocaína sumiam nós narizes de seus amigos. Era a vez de Gui. Ele hesitou. Nunca tinha experimentado. Os outros olharam para ele, esperando. Tomou coragem. Cheirou. Estendeu a caneta para Dora.
- Você não vem?
A figura de seu pai surgiu dentro da cabeça. O que é Joel pensaria dela nessa situação? Nem fazia um ano que partira. E ela já estava diante de uma carreira de cocaína. A famosa branca. Se ele soubesse, que decepção! Mas não queria fazer feio diante dos amigos. Engoliu em seco. Tomou coragem.
- Não quero. Não gosto.
- Como não gosta, se nunca experimentou? - insistiu Naldo.
- Não quero, pronto.
Todos riram. Era uma espécie de gargalhada estridente. Uma garota deu de ombros:
- Criança é assim. Mesmo furiosa, decidiu não cheirar. Maconha, todos diziam que não fazia tanto mal(Embora certa vez tivesse ouvido falar que o fumo vem misturado com tudo quanto é porcaria. Os traficantes, para aumentar o lucro, botam até esterco no meio.) Assustou-se quando Emília debruçou-se sobre a mesa e aspirou. Trocou um olhar com ela, surpresa. A amiga se mexeu, orgulhosa. Sentia-se superior. Nas horas seguintes, ficou ouvindo Gui falar como se estivesse ligado e motor na língua. Contou exaustivamente como seria sua vida nos Estados Unidos, quando fosse um grande jogador de basquete. Dora ficou com os ouvindos ardendo, de tanto que ele falava.
Era tarde. Insistiu em voltar.Gui irritou-se. Discutiram. estava emburrado quando a deixou em casa. Sozinha no quarto, Dora chorou boa parte da noite. Estaria errada por não entrar no espírito dos outros? Tinham ficado tão animados depois de cheirar. As garotas dançaram. Gui parecia brilhar. Silenciosamente, abriu a janela do quarto. Pegou uma pontinha de um baseado escondida no fundo da gaveta e acendeu.
- Não é legal, Dora. E se a mamãe descobrir?
Virou-se, tinindo de raiva. O que é André estava fazendo na porta? Com que direito...
- O o pessoal na escola já fala de você, Dora.
- Eu não estou nem aí para eles.
- Todo mundo sabe que o Gui transa fumo. Tem gente que já viu você com ele fumando numa esquina.
- E você com isso? Aposto que na escola tem uma porção de gente que curte esse negócio.
- Tem mesmo, e daí? Só não acho legal você trazer pra cá. A mãe...
- Quer saber de uma coisa, André... vá cuidar da sua vida. A mãe só vai ficar sabendo se você contar.
- Você anda muito diferente, Dora.
- Não enche. Aposto que você está louco para experimentar.
Ouviram a voz da mãe, do quarto.
- Que barulho é esse? Briga, a essa hora da noite?
Apagou a guimba, escondendo irritada. Abanou o ar, para tirar o cheiro.
- Não é nada, mãe. O André veio falar comigo.
Encarou o irmão.
- Sai daqui. Vê se me deixa na minha.
Fechou a porta, quando ele partiu. Pensou como era incrível a quantidade de problemas que tinha de enfrentar.
Passada a raiva, voltou à preocupação inicial. Se experimentasse só uma vez, à coca faria mal? Tinha certeza que não. Talvez fosse como bebida. Muita gente bebe apenas socialmente. É diferente de ser viciado. Poderia se controlar, se quisesse. Falaria com Gui a respeito. Com Emília também. Nenhum deles era viciado. Eram corajosos. Sentiu-se uma covarde. Poderia ter experimentado. Só para saber como era.
O grupo passou a deixá-la de lado. Às vezes, no apartamento de Naldo e do primo, ou em outras reuniões, notava que algumas pessoas sumiam. O banheiro, sempre trancado. Gui também ficava fora de vista por algum tempo. Voltava com os olhos brilhando e falando sem parar. Tentava falar da coca. Gui disfarçava. Dizia que ela era muito criança para o negócio. Brigavam, depois faziam as pazes. A maior parte dos amigos parecia compartilhar um segredo, do qual era excluída. Mesmo Emília se afastava.
Dizia que era muito legal, só isso. Dora fingia que não saber. Criticava a amiga.
- Você começa assim, não sabe onde pode parar.
- Parece até minha mãe falando.
Irritava-se com a atitude de todos deixando-a de fora. Seu aniversário chegou. Cleusa queria fazer uma festa, no salão do condomínio. Chamar as amigas da escola. Arrepiou-se só de pensar. O que a turma pensaria daquelas meninas mal-arrumadas?
Por fim, comemorou três vezes. A primeira foi almoçando na casa de Gui. No final, surgiu um bolo na mesa. Cantaram parabéns. Ganhou correntinha de ouro. Em casa no jantar, a mãe também fez questão de comemorar. Apareceu com bolo comprado e presente. Calça e jaqueta jeans, pretas. Ela e André não se falavam muito, desde a briga. Mesmo assim, abraçaram se com carinho. O pai telefonou na vizinha. Cleusa havia combinado tudo, vieram chamar. Era emocionante ouvir a voz de Joel depois de tanto tempo.
- E aí, filha?
- Tudo bem, pai. E você, tudo legal?
- Tudo.
Ficaram em silêncio algum tempo. Era difícil continuar, depois de tanto tempo sem se verem. Disse a única coisa que veio na cabeça.
- Pai, eu queria ver você. Tenho saudades.
- Eu também, filha. É questão de tempo.
O telefonema acabou assim, meio sem assunto. Era doloroso não ter o pai por perto, nem no aniversário. O que valeu foi, depois, comemorar com Gui. Ele fizera uma festinha surpresa no apartamento dos primos. Havia um bolo comprado na padaria, cheio de velas. Naldo serviu-lhe um copo de cerveja. Bebeu um pouco, apesar do gosto amargo. Cantaram. Ela riu, disse que nunca tinha recebido tantos parabéns num só dia. Depois, Naldo abriu um pacotinho. Alguém trouxe um espelho do quarto. Dessa vez ninguém estava fazendo segredo. Naldo botou o pó, esquentou. Enquanto batia as carreiras, ofereceu:
- Hoje é pra você, Dora. Eu mesmo comprei. Presente de aniversário.
Olhou para Dora.
- Desta vez, você não vai recusar, vai?
Ficou emocionada por Naldo ter pensado nela. Ele devia ter gasto uma nota para comprar tanto da branca. Os olhos se umedeceram. Mas também sentiu um arrepio. Uma dúvida. A mão de Gui apertou de leve sua coxa. Não, não podia fazer feio. Recusar essa demonstração de amizade. Aproximou-se, pega caneta vazia da mão de Naldo. Encostou no nariz, e cheirou. Dentro da cabeça ouviu um tóim! Seu corpo todo parecia receber uma descarga elétrica. Sentiu vontade de dançar, falar, rir... voar! A visão ficou um pouco turva, desfocada. Piscou, várias vezes. Emília riu também.
- Bateu, Dora?
Não conhecia o termo, mas sabia o era.
- Bateu. Legal
Gui cheirou uma carreira, ofereceu outra. Aceitou. Subitamente, ela sentia-se forte. Poderosa. A sensação de tristeza que havia desde o telefonema do Pai sumiu. Decidiu que iria para a floresta amazônica vê-lo. Era só querer. Podia tudo que quisesse. A música, cada vez mais intensa, parecia entrar diretamente nos seus ossos. Foi para o meio da sala, começou a dançar. Sempre fora um pouco inibida, costumava achar que era um tanto desconjuntada. Agora seus membros pareciam unidos em harmonia com o som da música. Gui e Naldo se aproximaram, dançando com ela. Dançava, dançava, o mundo todo se transformava num rodopio. Ria sem parar.
Ah, como estava feliz!

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