Prólogo

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Os pratos caiam.
As mesas tremiam.
O cheiro a fumo impregnava a sala.
A porta abre-se de rompante e um homem entra, gritando ordens aos presentes. Estes levantam-se das suas cadeiras e correm para os baldes de madeira e metal. Vão disparados para a rua deixando um menino dentro do edifício.
Corre.
Foge.
A rua onde sempre vivera transformava-se naquilo que o Padre António anunciava aos pecadores. Rachas rasgavam o chão e chamas lambiam o céu. Por entre as vielas nas quais deixara de ser uma criança corriam águas douradas, refletindo o céu pintado de vermelho, que arrastavam tudo consigo. Gritou por ajuda quando a onda o arrebatera contra um edifício de pedra. Ele não ouvira resposta, o que não era novidade devido à sua surdez de nascença, mas mesmo que conseguisse distinguir as palavras do silêncio da sua cabeça, não ouviria nada, tal era a desordem na praça onde ele fora desaguar.
Sentiu algo prender-se à sua camisola. Descobriu uma mão que o arrastava da inundação que o puxava para o mar para uma cave inundada. Corpos flutuavam à beira da porta desta. Ao perceber onde acabaria, começou a debater-se, arranhando, mordendo e pontapeando tudo o que via, na esperança de atingir o seu raptor. Então, após algum tempo a limpar o chão com o seu corpo, o rapaz levanta-se e encontra um par de olhos azuis na cara de homem com idade para ser o seu pai. Ele olha o miúdo nos olhos e, com uma mão no ombro dele e outra tapando o nariz, inspira profundamente e aperta as narinas. O rapaz acenou e o homem meteu-o dentro da água gelada entrando de seguida. O homem, olhando para o rapaz, agarra-lhe a mão e estende um dedo. Dois dedos. Três dedos.
O jovem respira profundamente e fecha os olhos, sendo a morte e destruição a última coisa que vê antes de entrar na totalidade da água gelada. Sente-se a ser puxado pelo o homem através da cave inundada. Submerso, tentou abrir os olhos, mas não via nada, tal turvez assombrava as águas. Os seus pulmões reclamavam por uma nova inspiração, mas o rapaz cerrou os dentes, recusando-se a abrir os pulmões, esperando que o homem lhe estivesse a salvar a vida e não o contrário. Bateu com a cintura no que lhe pareceu ser mobília. Num instinto, gemeu, libertando bolhas daquilo que seria, pensava ele, o último vestígio de ar da sua vida. Numa tentativa de se salvar, o seu corpo aspirou quantidades enormes de água. Rapidamente, para além de surdo ficou cego e dormente. O peito queria explodir, recusando-se a usar a água como substituto do ar. A garganta inchava-se-lhe e ouvia um zumbido, como o de quantas e tantas vezes em que fora espancado quase até à morte. Era o seu fim, e o homem nem dera por isso, continuando a puxar. Deixou de tentar lutar pela sua vida. Fora estúpido ao pensar que o homem dos olhos azuis o quereria salvar. Nunca ninguém lutara por ele, nem os seus próprios pais. Sempre esperou em acabar morto nas sarjetas esvaiado em sangue, sem que nem sequer os mendigos se atrevessem, se dignassem!, a olhar. Limitou-se a deixar-se arrastar... A água deixara de ser fria para ele... O peito deixara de o picar... O coração deixou de bater, de lutar por ele... O homem deixou de o puxar... É aqui que tudo acaba....
Então, com um safanão enorme, o menino despertou da sua sonolência e disparou na direção em que o seu pulso o guiava. As suas últimas memórias foram dele a sair de dentro de água e ver olhos azuis.
- Não te atrevas a morrer agora! - ouviu o rapaz o homem gritar.
Apagou.

Injeção De CrimeWhere stories live. Discover now