Capítulo 2

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    ENQUANTO DIRIJO PARA CASA, oscilo entre a raiva por mim mesmo e a aceitação por saber que o que aconteceu nessa noite foi mais do que justo comigo. Eu magoei Angelina e um chute era pouco para o que eu realmente merecia, mas é claro que a gente sempre tem esperança. Porém, sem causa aparente, houve alguns saltos irregulares em meus pensamentos trazendo à tona o rosto de Ana. Achei aquilo esquisito, mas imaginei que era só a minha mente tentando escapulir da ruína. Afinal, aquele rosto fora o meu único alento naquela noite soturna.

    Após uma hora e meia de viagem, já no alvorecer, cheguei em casa. Quando finalmente entro no meu apartamento na Tijuca, às escuras, vou direto para o meu quarto. Não tenho energia para me trocar. Deito-me na cama sabendo que não iria dormir e querendo recomeçar a minha vida do zero, mas sabendo que isso não era possível. Assim, em vez de dormir, deixo a minha mente vagar. Eu precisava dar um novo rumo à minha vida.

    Passo a noite toda lambendo minhas próprias feridas. Estou na fossa. Ora achando a minha vida uma droga e dizendo a mim mesmo que deveria buscar consolo na Bíblia, ora me incentivando a desencanar e a pensar positivamente. Mas não faço uma coisa nem outra. Em vez disso, fico vendo televisão. Às sete horas resolvo me levantar. Troco minhas roupas formais pela beca de corrida. Sinto que preciso orar, e gosto de fazer isso enquanto corro.

    Porém, nada é tão fácil nessa vida.

    Passo os próximos vinte minutos procurando meu tênis no "mafuá" que está o meu apartamento. Não que a residência seja grande, afinal, tem apenas um quarto. Mas foi o que deu para comprar depois da venda da picape que eu havia ganho de Amália, e eu estou bem satisfeito com isso (não com a venda, vamos esclarecer, mas com a compra). A verdade é que está tudo uma zona. Herdei maus hábitos da antiga boa vida vivendo por empréstimos os triunfos da minha ex, quando nunca precisava fazer nada. Por causa disso, agora eu vivo na bagunça. Minha ajudante só vem uma vez por semana, geralmente no sábado, e nesse dia sempre acontece um milagre: ela materializa as coisas, tudo reaparece. Já cheguei a me questionar se não é ela mesma quem leva as coisas para me dizer depois que achou. As pessoas fazem loucuras para manter o emprego. De todo modo, me convenceu, pois não consigo mais viver sem Verônica. Contudo, até agora ela ainda não havia dado o ar da graça. Nem ela, nem meus tênis. Olho para a confusão no armário e resolvo pegar um par mais velho mesmo, tristemente desgastado. Como tenho amor à vida, não me arrisco a cheirá-lo. Uso um spray antisséptico neles e os enfio corajosamente nos pés. Em seguida, pego meu carro e peregrino até a Lagoa. Corro por quarenta minutos e confesso todos os pecados que me vem à cabeça, depois agradeço pelas bençãos, bem certo de que esqueci a maioria. Apesar de não ter dormido nada, sinto-me revigorado após o exercício. Depois dessa "corrida espiritual", sento-me em um quiosque para tomar uma água de coco. No momento em que a bebidachega, o celular vibra no meu bolso. É do jornal.

    Mas que droga! Hoje é sábado! penso eu de cara feia.

    Tenho vontade de arremessar o aparelho longe Mortificado, respiro fundo e atendo o telefone. Por causa disso, sou informado de que daqui a quinze dias haverá um seminário em São Paulo, que durará "apenas" uma semana, e que eu fui o azarado escolhido para ir. Olho para a vista à minha frente e sinto o meu ânimo desmoronar. Nunca gostei de ficar longe do mar. Mas tenho conhecimento de que, por obra de alguma estranha intervenção divina, estou sendo cotado para uma vaga de editor-chefe no meu setor. Então, compreendo que tenho de ir. Mesmo sabendo que não ouvirei nada de útil, preciso parecer interessado. Não que eu tenha esperança de realmente conseguir a vaga, afinal, estou somente há poucos meses na editora. Mas só estar na disputa já é uma honra.

ENTRE A MENTE E O CORAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora