O cego da Boavista

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Um velho destroço abandonado

Sobe a sombria rua enoitecida

Em busca dum leito desabitado

Na reles esquina ali ao lado,

Perto da longa e larga avenida.

Derrama a alma sobre o chão

E cobre o corpo com um jornal.

Adormece sem sentir a contrição

Com que se arrasta a civilização

Desde que criou o bem e o mal.

Sonha no silêncio da fantasia

De um lugar que nunca se avista,

E acorda com o brilho da poesia

Da lua que o baptizou um dia

De "o cego da Boavista".

Nem sequer vê a àguia devorada

Por um leão frenético e faminto,

No monumento da rotunda parada.

Mas sente a visão fria e calada

Daquele vencido animal extinto.

A mãe madrugada nasce num jazigo,

Porque a noite gelada e piedosa

Levou o seu amado filho consigo:

A alma livre subiu a um abrigo

E deixou o cadáver na rua irosa.

Do meio da multidão indiferente

Irrompe um rosto sem expressão

Despindo o casaco caro e quente,

E cobrindo o seu professor ausente,

Que acaba de dar a última lição.

Vozes SilenciosasOnde histórias criam vida. Descubra agora