Fogo e Sangue - Ato I: Traição

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O reino de Narodor se preparava para comemorar seu quinquagésimo terceiro ano de paz. O rei Tauin III mandara construir uma belíssima fonte no centro da Capital para comemorar e um grande banquete estava sendo preparado. Aves das mais diversas eram abatidas e preparadas nas cozinhas reais, porcos grunhiam para fugir do machado e a cidade inteira se via polvorosa como poucas vezes antes.

Todos os grandes senhores do Reino haviam sido convocados também e logo chegariam com suas comitivas. Lorde Antipa fora o primeiro a chegar, vindo de Serra Vermelha, trazendo consigo os duzentos homens de sua guarda pessoal e suas belíssimas dez filhas virgens. Dom Atros Portamir, acompanhava seu já idoso pai, Lorde Portamir e era franco favorito nas justas.

Muitos questionavam o porquê de tanta ostentação, depois de um ano de colheitas ruins e doenças alastrando a cidade. Alguns diziam que Tauin queria simplesmente demonstrar seu poder aos vassalos e fazer com que todos engolissem que estava tudo bem. Outros, entre os quais os mais próximos do rei, podiam jurar que tudo o que ele desejava com a comemoração era levantar o moral de todos.

Na data marcada, o povo esperava desde cedo próximo à longa mesa montada na Rua Grande, em frente às portas do Palácio Real, enquanto os nobres dividiam o Grande Salão com o a Rainha Esméria. Os dois banquetes foram servidos e enquanto os bardos cantavam os lordes cochichavam entre si.

— Pra que tanta ostentação quando o reino passa fome? — perguntou Lorde Matros, de Amontada, um homem magro de negros cabelos e barba pontuda.

—Em minhas terras ninguém passa fome, Lorde. Não sei do que falas.

— Dizes assim porque tiveste a sorte de não ser atingido pela tempestade do início do ano, Lorde Malba. — respondeu Lorde Acúlia, do Vale. Lorde Matros tem razão. Não há o que Tauin estar comemorando num tempo de tantas dificuldades.

— Pergunto-me, Lorde Acúlia, se Tauin ainda tem condições de ser rei. Digo, se ainda mantém o discernimento como outrora. — insinuou Matros.

— Ora, como podes dizer isso se o rei passa pouco de quarenta primaveras? — indignou-se Lorde Malba.

— Digo vendo tudo isso!

— Senhores, senhores, essa discussão não nos levará a lugar algum. Por certo que poderemos levar nossas queixas a Vossa Majestade. —ponderou Lorde Saltos.

— Poderemos? Já o viu desde que chegou?

— Na verdade, não.

Lorde Matros vinha da província de Amontada, a última a ser anexada ao reino, cem anos antes e sentia que ela era a menos prestigiada pelo reinado de Tauin III. Na verdade, vários ressentimentos do tempo da guerra ainda persistiam e ele era conhecido como um grande opositor da coroa.

A curiosidade dos três lordes foi logo satisfeita, quando a música cessou, trombetas começaram a tocar e as portas do salão foram abertas, revelando o rei no mais rico traje possível, acompanhado de perto de seu filho e herdeiro Dom Taurus e de suas duas filhas, Lairia e Medea. A tropa que o seguia de perto se espalhou pelo salão vigiando a tudo e a todos. Ninguém poderia sair dali sem que um deles soubesse e alguém que pensasse em fazer algo que não deveria estaria em maus apuros, pensou Matros.

O rei sentou-se no trono, enquanto seu herdeiro permaneceu em pé a seu lado, como era o costume e suas filhas dirigiram-se ao pavilhão lateral onde fizeram companhia à Rainha. Assim que o soar das trombetas cessou, o arauto real pigarreou para chamar atenção para si e entoou poeticamente:

“Lordes, Senhores e Senhoras, saúdem o Vosso Rei, Tauin III”

No mesmo instante, dezenas de mãos direitas socaram as mesas e depois foram erguidas enquanto era soava um coro de “Salve Tauin!”

Assim que se calaram, Tauin se levantou novamente e com sua voz mansa e pausada, porém ressoante falou:

—Lordes, Senhores e Senhoras, é com indizível prazer que eu os recebo hoje em minha casa. É um dia de festas no Reino. Que se sirva o banquete!

A porta do salão foi novamente aberta, agora para a entrada de grandes bandejas trazendo a grande variedade de comida que estava sendo preparada nos últimos dias. Havia faisão, peru, frango armitês, leitão assado com mel e outros tantos pratos. Também era servido vinhos de várias idades, o mais velho engarrafado no reinado de Tauin II, oito gerações antes do atual.

Quando a maioria dos homens já não se aguentava de tão estufados e os mais jovens ainda degustavam as sobremesas, entre as quais estava um creme feito de uma fruta pouco conhecida ali, chamada abacaxi, o arauto pigarreou novamente e o vozerio se calou instantaneamente.

—Lordes, Senhores, Senhoras, o Vosso Rei, Tauin III, tem a vos falar.

Tauin se levantou pela segunda vez, com a mão direita erguida à altura dos olhos e começou a discursar:

— Lordes, senhores, senhoras, súditos de Narodor. Hoje é um dia de grande alegria para o reino. Comemoramos aqui, dentro do palácio, tal qual a plebe comemora lá fora. Somos um reino em que impera a paz e a ordem. Outrora, a situação era diferente. A guerra destruía nossos campos. Matava nossos filhos não só pelas armas, mas também pela fome, pela doença. Mas esses tempos já se foram e hoje em nosso reino reluzem a paz e a prosperidade. Hoje nossos filhos não têm o que temer. Podemos ver seus sorrisos sem ter o receio de ser a última vez.

—Majestade.

— Pois não, Lorde Matros?

— Eu estava me perguntando, junto com meus colegas e vassalos... O que comemoramos hoje? Que motivos temos para estarmos tão felizes quanto afirma Vossa Majestade?

— Ora, como eu disse, é tempo de celebrarmos o fato de estarmos unidos e em paz, para que possamos vencermos de uma vez as adversidades que têm assolado nosso reino, lorde.

— Eu não sei quanto ao “unidos”, mas a meu ver, não podemos comemorar muita coisa, quando a colheita em Amontada é cada ano mais pobre e a deste ano é um das piores do século. Quando as tempestades no verão destruíram metade do País e cheias dos rios alagaram boa parte de nossas minas as dívidas da Coroa estão altíssimas. Me pergunto: de onde tira para esbanjar tanto, Tauin?

— Mais respeito com seu rei, Lorde Matros! — bradou Lorde Malba ali perto.

Um burburinho se iniciou, mais alto e acalorado do que estivera naquele dia. Antes que o arauto pigarreasse uma terceira vez, o rei se antecipou e falou alto, para se sobre por à multidão, seu orgulho ferido:

— O Rei não tem dívidas, Lorde Matros. Afinal, o Rei nunca erra. Assim diz a lei de sempre.

— Por certo, Majestade. “O Rei nunca erra”. Quem erra são os outros, os reles mortais, como todos nós aqui neste salão. Então, tenho certeza que perdoará este meu grave deslize.

— É claro que o perdoo, lorde, mas que nunca mais volte a cometer tal blasfêmia.

— Muito obrigado, Vossa Majestade. Não gostaria de entregá-lo aos deuses, carregando este remorso.

— Como disse? — enfureceu-se o rei. Mas um punhal já se enterrara na base de seu pescoço, abrindo uma profusa vertente de sangue fortemente vermelho.

A confusão que se seguiu foi um borrão de cinza metálico e vermelho líquido. Só se ouviam gritos e som de lâminas se chocando. O príncipe Taurus, que havia corrido para socorrer o pai, fora apunhalado pelas costas pelos homens de sua própria guarda, enquanto as dobras do vestido da rainha aparavam seus intestinos.

Corpos se espalhavam pelo chão e pelas mesas, quando a guarda da cidade adentrou o salão e uma voz se sobrepôs à balburdia.

— Senhores! Senhores! Basta! Basta! Acabou! Acabou! O tolo rei está morto! Uma nova era em Narodor se inicia hoje. Saúdem o vosso novo rei!

Todos os soldados permaneceram inertes e aqueles que ainda lutavam fizeram o mesmo, boquiabertos. Viam Lorde Matros de braços abertos, no pavilhão real, com a coroa sobre a cabeça.

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⏰ Última atualização: Jun 05, 2013 ⏰

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