Folha e o Tigre - Parte II

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Dez anos após o evento conhecido como Sol da Meia noite, o mundo apresentava mudanças consideráveis. Voando pelas planícies que cercavam a Floresta eterna era possível perceber casas, umas próximas das outras, o que indicava o início de cidades.

Em momentos passados, a tarefa de erguer um vilarejo era algo que demandava muita coragem. Afinal, a ausência de magia transformava qualquer aglomeração em um alvo, e o local em uma zona de batalha. Apenas a vontade de viver juntos, inerentes aos animais sociais, não era o bastante. Força para se proteger encabeçava a lista de prioridades, bem como magia para alimentar a todos.

O mundo hoje era diferente. Infelizmente, nem todas as mudanças eram para melhor.

O vilarejo adiante parecia um bom lugar para desjejum de Folha, que acordaria em breve. Voar por toda noite poderia ser uma tarefa exaustiva, contudo Aelon era habituado a longas viagens sem paradas e sem descanso. Criatura mágica singular e poderosa, não se sujeitava a necessidades simples tais quais comer e dormir.

- Chegamos, Folha. Hora de acordar.

Com muita preguiça, a criança de cabelos da mesma cor da folhagem primaveril, bocejou e se espreguiçou, estalando diversos dos ossinhos. Aelon manobrava nos céus, se preparando para pousar, e Folha teve de se agarrar nos pelos de seu irmão para não cair.

Algumas pessoas reunidas se preparavam para o início de mais um dia de trabalho. Arar o campo, cuidar de animais falantes e espertos (vacas rosadas eram sempre um problema, principalmente por seu raciocínio ágil) demandava muito esforço.

- Você já esteve neste vilarejo, irmão? - Folha corria os olhos pelo local e o pouso se aproximava. - Ele parece recente.

- Bons olhos, Folha. Deve ter sido levantado faz poucos anos.

A chegada do tigre alado causou um alvoroço nos habitantes, que não sabiam se tratar de aliado ou inimigo. Alguns homens levaram suas mãos até as armas, tinham em si o medo de anos passados.

O céu matinal multicolorido de Thystium oferecia seu tradicional espetáculo e o sol irradiava sua luminosidade às costas do fabuloso e imponente animal que pousava. O reflexo cegou por instantes o que olhavam diretamente para os dois que pousavam e ao voltarem a enxergar, não havia distância entre eles. Qualquer tentativa de ataque seria frustrada pelo elemento surpresa desperdiçado.

- Podem guardar as armas, não somos inimigos. - disse Aelon com autoridade da voz carregada de magia. Tal qual seu rugido, sua voz era poderosa. - Viemos ter um bom desjejum, podem nos oferecer pouso por hoje?

Os homens simples do local trocaram olhares surpresos. Mas não pareciam inclinados a recusar o pedido da criatura, ademais havia uma criança envolvida. Uma criança pequena e de aparência frágil.

Um dos homens ficou para trás, meio a contragosto, para auxiliar aos recém-chegados. Os acompanhou até a principal casa do local e durante todo caminho ouviram piadas vindas das ovelhas. Principalmente pelo cabelo escuro-esverdeado de Folha ter cor de comida. Em Thystium, as ovelhas tem um senso de humor ácido.

Sem se abater com as provocações, Folha continuou caminhando de cabeça erguida, determinado em não se distrair com os pés de fruta variados que eram plantados no local. Era curioso notar que muitas das frutas cresciam nos caules, exatamente como nas histórias contadas de anos atrás, quando a magia se esgotava lentamente.

As casas eram de construção sofisticada, fato que só era revelado por um olhar mais atento. A distância, o local parecia rústico e malfeito. Nada mais distante da verdade.

Folha foi arrancado de seus pensamentos com um aviso do homem que os guiava. "Chegamos, podem entrar."

Diversas mulheres trabalhavam em pratos que alimentariam todo o local na hora do almoço, era uma tarefa comunitária. Alguns meninos e meninas ajudavam com ingredientes, carregando e cortando, porém se detiveram olhando para o jovem Folha com estranheza. Pele morena, cabelos verdes.

- Fico sempre surpreso, irmão. Eles se impressionam mais comigo do que com você.

O tigre meneou sua cabeça, assentindo a afirmação de seu protegido. O sol começava a despontar com toda sua majestade e potência, as temperaturas subiriam naquele dia. Aelon aprendeu a encarar isso como um bom sinal.

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Os dois haviam respondido algumas perguntas, satisfazendo a curiosidade dos locais. Traziam consigo, no entanto, suas próprias dúvidas. Sobretudo Aelon, curioso pela engenhosidade das construções locais. Polias, calhas e outras ferramentas sofisticadas, outrora dominadas apenas pelo povo do subterrâneo, os Anões.

- Vocês mantem contato com anões por aqui? - perguntou o tigre sem rodeios, enquanto devorava um prato de aveia. - As construções parecem ter sido feitas por mãos capazes e treinadas.

Folha apenas levantou os olhos, sem mexer a cabeça. Sentiu o clima se tornando apreensivo e as mulheres reticentes nas respostas. As bocas se moviam devagar e os lábios buscavam formular respostas. Uma das crianças, ainda menor que o garoto de cabelos esverdeados, interrompeu o silêncio.

- São os homens prateados! - disse com um sorriso inocente. - Eles vêm sempre aqui nos ajudar.

As ferramentas utilizadas pelos homens na entrada do vilarejo eram produzidas com uma liga diferente de minério, o Tigre podia farejar. Somados a isso, construções e plantações com sementes vindas de regiões distantes.

- Com que frequência eles visitam? - continuou perguntando Aelon, se esforçando para se demonstrar indiferente. - Gostaria de saber.

As mulheres também se esforçavam para não parecerem preocupadas com as perguntas. Algumas delas calculavam o alcance das facas. Eram donas de casa em tempos de paz, após anos vivendo em batalhas pela sobrevivência. Sabiam se defender, se preciso fosse.

- A cada dois meses, mas nunca repetem os dias. - respondeu uma delas, enquanto limpava a faca em seu avental. Estava descamisando um coelho, removendo a pelagem para cozinhar. - Estão atrasados, na verdade.

Terminando a refeição com calma, Folha agradeceu com gestos educados que aprendera meses atrás em outro vilarejo. Não obstante, deixou algumas moedas de ouro branco, obtidas no mesmo local. A criança possuía habilidades mágicas grandiosas, principalmente no tocante a plantas. Sabendo a importância do ouro branco na maioria dos vilarejos, trataram de obter algumas peças.

- Fiquei curioso, senhoras... - iniciou Folha quando se preparavam para partir. - Não vi nenhum jovem adulto na saída do campo e aqui só vemos crianças. Onde eles estão?

- Bem... - a mulher titubeou antes de responder e mordeu o lábio inferior antes de prosseguir. - Os homens prateados os levaram. Para o sul, um local chamado D'Opur. Prometeram que os transformariam em grandes magos.

Os irmãos se entreolharam e resolveram partir antes que se deparassem com os tais homens prateados. Aelon tinha planos e não podia se deter naquele local, por mais que seus instintos acusassem que algo estranho acontecia ali.

Partiram do local tão depressa quanto chegaram e, sem olhar para trás, tomaram seu rumo nos céus.

Eram observados com grande atenção por um homem de beleza singular e de feições finas e delicadas. A pele se tornava prateada em contato com a luminosidade matinal, fora isso, era invisível em meio às folhagens. O observador sorriu e se dirigiu ao vilarejo com passos rápidos e precisos, sem deixar rastros.


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