A origem de Sandor - Final

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Gritos, mortes, explosões. Pessoas em chamas corriam desesperadas em todas as direções, e agoniadas sentiam a magia ser arrancada de seus corpos ainda em vida. Criaturas voadoras de penas negras e bicos dentados concluíam o trabalho sob as ordens de uma bruxa voadora que trajava roupas de seda. No chão um homem de cabelos desgrenhados se comprazia em meio a carnificina dos habitantes do pacífico local.

Rastejando por entre corpos e destruição, Sandor tentava evitar o sangramento em seus tímpanos após a onda sonora haver rasgado e destruído os mesmos. Avistara Ilfred caído e tentava com o restante de suas forças alcançar o idoso instrutor.

Reunindo a magia dos corpos que fluía em direção aos céus e ao solo, o homem de espada longa gesticulava sua lâmina em círculos com desenvoltura e nenhum pesar por estar coberto do sangue de inocentes.

Na profusão de atacantes, bicos, lâminas e garras, Sandor ainda desorientado perdeu Ilfred de vista. Quando o olhar o reencontrou, o idoso instrutor jazia morto. Trespassado por imensa e serrilhada lâmina.

- KA-SSSSU-KKKK!

Uma voz trovejante irrompeu no local, gerando uma onda de choque que derrubou casas e árvores, arrancando ambas do solo com facilidade. Os inimigos se protegeram como puderam do impacto ao ponto que Sandor perdia a consciência.

***

Os últimos dias pareciam uma série de acordar e desmaiar, que bailavam em uma rotina repetida à exaustão. Seu corpo estava em um estado de dormência e fraqueza, que para manter os olhos abertos era um esforço quase descomunal. As dores percorriam toda a extensão de seus músculos e movimentar-se era um suplício.

Cada gota de magia em seu corpo precisava ser preservada, afinal não sabia quando poderia consumir de novo. As dores indicavam, além dos óbvios ferimentos, que a falta de magia era uma preocupação óbvia.

- Acorde humano. – disse a voz com certa irritação. – Ande logo, abra os olhos.

- Não tem motivo para tratá-lo assim. – disse outra voz, essa com mais calma, todavia ainda assim ríspida. – Afinal, ele é nosso convidado aqui.

- Estou acordado. – replicou Sandor com dificuldade, se esforçando para manter os olhos abertos. – Mas me sinto fraco demais.

Com um gesto suave e leve, um dos interlocutores (uma mulher negra e de cabelos em espessas tranças, nariz comprido e fino, olhos lupinos amarelados e orelhas pontiagudas, denotando a origem élfica) estendeu sua mão esquerda cedendo um pouco de sua energia mágica para Sandor, que jazia estirado em uma cama improvisada.

Sentindo seu corpo levemente renovado se pôs sentado e encarou aqueles que o observavam. Dois homens e uma mulher. Todos elfos negros, que o jovem conhecia bem graças aos livros de Ilfred.

- O que querem de mim? – perguntou Sandor, notando em suas mãos, ainda carregadas de uma mistura de sangue e lama, o livro sobre a Serpente devoradora de sonhos. O livro estava sujo, mas agarrado em seus dedos com firmeza.

Nenhuma resposta. Os três seres de orelhas pontiagudas apenas aguardavam com olhares fixos. Sabiam que não deveriam ser eles a falar.

O silêncio era opressivo, quebrado apenas pela respiração ofegante do jovem ainda ferido e sujo.

- Seu nome é Sandor, correto? – disse a poderosa voz que vinha da escuridão. Olhando ao redor era possível imaginar que estivessem em uma espécie de caverna. – "Aquele que cuida da magia", um nome assaz sugestivo. Diga-me, sabes quem eu sou?

O jovem meneou negativamente com sua cabeça.

Saindo completamente da escuridão que o envolvia o homem de pele negra e orelhas pontiagudas deixava claro que ele mantinha algum tipo de autoridade. Ostentava nobreza e elegância, mas mesmo assim trajava roupas tão simples quanto os outros três presentes no local.

Nenhuma cicatriz, olhos amendoados e tatuagens com um material branco que pareciam prestes a saltar de sua pele. Com um gesto de seus dedos, evitou que os outros elfos presentes se ajoelhassem e se dirigiu diretamente a Sandor, levantando seu rosto com uma das mãos e olhando-o nos olhos.

A encarada de ambos parecia revelar todos os segredos de Sandor ao elfo negro. A alma do jovem caminhante era um livro aberto, com letras garrafais, nas mãos do poderoso senhor.

- Eu sou Kassuq, líder e xamã desta comunidade élfica. – disse o homem com a altivez e garbo que lhe eram indissociáveis. O elfo se aproximou e ergueu o rosto de Sandor, fitando-o nos olhos. – Durante muito tempo mantive o vilarejo dos humanos de pé, cedendo magia aos habitantes em troca de sua juventude. Envelhecia seus corpos, mas conferia a chance de continuarem vivos. Uma troca justa.

Detendo sua fala por alguns instantes, soltou o rosto de Sandor e suspirou com grande enfado.

- Eles tinham meios de aprender, de nos ajudar, mas não foram capazes de sair de sua ignorância amedrontada. Tinham tanto medo da morte, que acabaram mortos em vida. Sabe qual a razão para não encontrar tantos vilarejos humanos? Eu lhe respondo. Os próprios humanos devoram a magia uns dos outros, somente os fortes sobrevivem. E ninguém retribui.

- Não entendo. – disse Sandor interrompendo o xamã Kassuq, o que consternou os elfos presentes. Fato estampado em suas expressões incrédulas. – Por que está me contando tudo isso?

- Você tem algo que eu e os meus queremos. – respondeu Kassuq sem demonstrar nenhum abalo por ter sido interrompido. Sua voz se mantinha sempre calma. – Não me importa como o conseguiu, mas nós precisamos disso. Em troca, darei a você a possibilidade de erigir seu Povoado.

Sandor estremeceu. Em seu íntimo, desde o encontro com Dûn, era o que mais desejava. O principal pensamento em sua cabeça. Encontrar o Povoado de seus ancestrais e fazer dele um porto seguro para todos aqueles que buscavam a paz em um mundo caótico e violento. Naquele instante, se tornava visível que Kassuq poderia enxergar os pensamentos mais profundos, fosse de quem fosse.

- Senhor xamã, me desculpe. Mas não consigo imaginar nada que eu possa lhe oferecer.

- Essa preocupação é inteiramente minha, meu caro. Sabe por que nenhum vilarejo consegue se sustentar? Pois são vulneráveis, frágeis e chamam a atenção de atacantes. Eu tenho a técnica que pode tornar seu Povoado diferente dos outros. E você, meu jovem, é um humano diferente. Pode enxergar distante, tal qual alguém no cume de uma montanha.

- O que desejaria em troca de tão poderoso segredo? – perguntou Sandor, mesmo temendo pela resposta vindoura.

- Tudo que Dûn lhe ofereceu e a honra de proteger um dos nossos quando lhe for solicitado. – respondeu Kassuq sem pestanejar. O elfo parecia ter tudo planejado, parecia saber onde colocar cada uma de suas peças diversas jogadas adiante.

A mente de Sandor viajou anos à frente, enxergando mais uma vez gotas de probabilidades em meio a um oceano de possibilidades. O futuro, alguns futuros, diversos deles. Um líder, uma guerra, um povo seguro e protegido.

Com pesar, mas com olhar distante e determinado, Sandor abriu mãos dos diversos dons de dobrar o tempo e o espaço em troca do segredo de uma muralha invisível e praticamente intransponível.

Acompanhado por elfos negros, que faziam sua escolta com zelo, chegou até as terras de seus ancestrais. Local que viria a se tornar palco de acontecimentos que moldariam o futuro do mundo, da magia e de todos os seres viventes.

Um lugar para finalmente chamar de lar. Um lugar onde seria fundado o Povoado da Muralha invisível.


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