Renascida— Espere por mim! — Kara corria pela Saint Paul Street. Ela apertava o
telefone celular contra sua orelha com a mão suada. — Estarei aí em dois
minutos!
Suas sapatilhas negras de balé faziam ruído nos paralelepípedos,
enquanto ela se esquivava do tráfego vindo no sentido contrário, seu portfolio
pendia ao seu lado. Ela pulou para a calçada e correu por entre a multidão.
— Não consigo acreditar que você não esteja aqui ainda — disse a voz
do outro lado da linha. — De todos os dias, você tinha de escolher hoje para se
atrasar!
— Ok, ok! Já estou tendo um treco por causa da apresentação. Você não
está ajudando muito, Mat.
Uma risada veio pelo telefone.
— Só estou dizendo... que este deveria ser o dia mais importante da sua
vida. E você, Mademoiselle Nightingale, está atrasada.
— Sim, eu ouvi você da primeira vez... MÃE. Não é minha culpa. Meu
despertador estúpido não tocou! — Kara corria em disparada pela rua
movimentada, com seu longo cabelo castanho subindo e descendo contras suas
costas. O odor de gordura e cerveja dos pubs alcançaram as suas narinas e o
coração dela martelava em seu peito como uma britadeira. Ela sabia que, se
perdesse a apresentação, suas esperanças de conseguir uma bolsa haviam
terminado. Ela não tinha mais dinheiro para a universidade, então esta era a sua
única chance.
Sobre as cabeças da multidão, Kara pôde vislumbrar a placa, Une
Galerie. O elegante estêncil em letras negras garrafais, o nome pairava sobre as
magistrais portas de vidro da galeria de arte. Ela podia avistar sombras das
pessoas reunidas em seu interior. O peito dela se apertou. Ela estava apenas a
uma quadra de distância agora.— Você sabe, a apresentação não vai esperar por você...
— Sim, sim, eu sei. Juro que vou chutar a sua bunda quando chegar aí!
— Kara rosnou no telefone, tentando recuperar o fôlego.
Durante um horrível instante, ela pensou que não conseguiria chegar a
tempo e considerou sair da calçada e, ao invés disto, correr pela beira da rua. Ela
olhou para trás para conferir quão ruim estava o trânsito.
Então seu coração deu um pulo.
Menos de uma quadra para trás, um homem estava parado imóvel e
indiferente à onda de humanidade que fluía a seu redor. Ele estava olhando
fixamente para ela. Seu cabelo branco se destacava de seu terno cinza-escuro.
Kara franziu o cenho.
Os olhos deles são negros, ela constatou.
Um calafrio subiu por sua espinha. O homem se misturou à multidão e
desapareceu, como se houvesse sido um mero truque de luz. Os pelos da nuca de
Kara se eriçaram, enquanto uma sensação de premonição a preencheu e aum
vontade de gritar. Quem era aquele homem?
— Acho que estou sendo seguida — Kara disse em seu celular após
alguns segundos, com a boca seca.
— Você sempre acha que está sendo seguida.
— Não! É sério! Eu juro... este cara está me seguindo — algum
psicopata com cabelo branco. Eu... eu acho que já o vi antes. Ou pelo menos a
minha mãe viu...
— Todos sabemos que a sua mãe é meio doida às vezes. Sem querer
ofender, eu amo a sua mãe, mas ela tem visto e falado com pessoas invisíveis
desde que você tem cinco anos. Acho que isto está contagiando você.
— Escute. Estive com a minha mãe ontem na Saint Catherine Street e
ela disse que nós estávamos sendo seguidas por alguém. E se fosse por este
mesmo cara? Talvez ela não seja tão louca quanto todos pensam — Kara se
perguntou se não havia uma pequena verdade nas visões de sua mãe. Ela a
amava muito, e Kara se odiava, às vezes, por pensar que sua mãe fosse lunática.
Mat riu.
— Você está falando a sério? Já é ruim o bastante que sua mãe veja
espíritos e demônios. Se você começar a acreditar em tudo isto, vão interná-la.
— Obrigada pelo voto de confiança. Refresque a minha memória do porquê você é o meu melhor amigo mesmo? — Kara decidiu trocar de assunto.
Afinal de contas, o homem estranho havia sumido e o medo dele se evaporava a
cada passo, sendo substituído pelo nervosismo e inquietação por causa da sua
apresentação. Ela se concentrou na placa da galeria, enquanto corria.
— Ok... Consigo vê-lo agora.
Matt estava encostado no exterior de tijolo da galeria. A cabeça dele
estava voltada para as portas de vidro. Ele tirou o cigarro dos lábios e soltou
fumaça em seu telefone.
— Acho que está começando. Apresse-se!
Kara sentia suas bochechas arderem. O coração dela latejava em seus
ouvidos e abafava os sons ao redor dela. Ela inspirou profundamente, torcendo
para que isto acalmasse o embrulho em seu estômago, e seguiu em disparada
pela Saint Laurence Boulevard. O telefone celular escorreu de sua mão e
chocou-se no asfalto.
— Caramba! — Kara se agachou para pegar seu telefone. — Telefone
idiota...
Um vislumbre de movimento apareceu no canto de seu olho.
— CUIDADO! — Alguém gritou. Ela parou e se virou.
Um ônibus coletivo vinha acelerado em direção a ela. Numa fração de
segundo, ela viu a imagem de dois monstruosos faróis.
Então ele se chocou.
Treze toneladas de metal frio esmagaram o corpo dela. Ela não sentiu
dor alguma. Ela não sentiu nada.
Tudo ao redor dela ficou preto.
Um momento depois, Kara estava em um elevador.
A princípio, raios de luz branca obscureceram a visão dela. Ela piscou e
esfregou os olhos. O elevador era elegante... três lados pareciam ser feitos de
painéis de cerejeira esculpidos a mão decorados com brasões de asas douradas.
O cheiro de naftalina pairava no ar, como no velho armário empoeirado de sua
avó. Quando a visão dela melhorou, ela constatou que não estava sozinha.
Em uma cadeira de madeira diante do painel do elevador, coberto com
pelo negro e vestindo bermudas verdes da qual saíam dois calejados pés com
aspecto de mãos, estava sentado um macaco.
Ele girou em seu assento, envolveu seus pés ao redor do encosto da
cadeira, abriu sua boca em forma de coco e disse:
— Olá, senhorita.
Kara ficou boquiaberta e engoliu a vontade de berrar. Ela encarou a
criatura, com terror crescendo em seu interior.
A cara peluda dele se enrugou em um sorriso, de modo que ele parecia
uma noz gigante. A cabeça quadrada dele se apoiava diretamente nos poderosos
ombros. Ele ergueu o queixo e observou Kara. Seus olhos amarelos a
hipnotizavam; ela não conseguia desviar o olhar.
Ele se parece com o Velho Nelson da loja de ferragens, ela pensou
descontroladamente.
Após um minuto, Kara foi capaz de pronunciar algumas palavras.
— E... Ei você, homenzinho-macaco-falante — ela balbuciou, então
sussurrou para si mesma — Este é definitivamente o sonho mais louco que já
tive. Tenho de me lembrar de contar para o Mat sobre isto amanhã quando eu
acordar. — A garganta dela estava seca como se ela não houvesse bebido água
por semanas. Ela tentou engolir, mas tudo que conseguia fazer era contrair os
músculos da garganta.
O macaco franziu o cenho. Então rosnou.
— Eu não sou um macaco, senhora. Sou um chimpanzé! Vocês, mortais,
são todos iguais. Macaco-isto, macaco-aquilo. Dá no mesmo se me chamasse de
cachorro! — Perdigotos atingiram o rosto de Kara enquanto as palavras
escapavam dos lábios dele.
Kara pigarreou, limpando o cuspe de seu rosto. Este era verde-
amarelado e fedia como um caso grave de gengivite.
— Ah... Desculpa, maca... chimpanzé. — Ela esfregou a mão em sua
calça jeans e fez uma careta. "Isto é mais do que estranho. Eu pensava que você
não sentia cheiro de nada em sonhos, pelo menos era o que eu pensava. Mas
isto... isto fede pra valer e é totalmente nojento."
O chimpanzé encarou Kara com um misto de desdém e indignação.
— Chimpanzé Número 5M51, se você não se importar.
Gradualmente, Kara começou a se sentir mais desperta, como se
houvesse acordado de um longo e profundo sono. A realidade rastejava
lentamente de volta junto com o medo de que talvez isto não fosse um sonho. Ela mordeu o lábio inferior enquanto disse a si mesma para pensar.
— Hum, qual o destino? Para onde estamos indo? — ela perguntou, com
seus olhos concentrados no chimpanzé falante.
Chimpanzé 5M51 virou a cabeça e sorriu, expondo filas de dentes
amarelos encavalados. Os olhos deles se fixaram nos dos dela.
— Para Orientação, é claro. Nível Um.
— Orientação?
— Sim. Todos os mortais devem passar pela Orientação. É para lá que
estamos indo. — Chimpanzé 5M51 agarrou com seus pés na beirada da cadeira e
estendeu seu braço anormalmente longo na direção do painel de controle do
elevador. Ele apontou para os botões de bronze.
Kara se inclinou para ter uma visão melhor. Estava inscrito no painel:
1. Orientação
2. Operações
3. Divisões de Milagres
4. Salão das Almas
5. Departamento de Defesa
6. Conselho de Ministros
7. O Chefe
Um sentimento de pavor cresceu lentamente dentro dela. Ela encarou o
painel, desnorteada, com seus joelhos fracos como se ela estivesse para
desmaiar. "Isto... isto não faz sentido... Eu... Eu estou sonhando. Isto é um sonho!"
Kara fechou seus olhos e apertou as costas contra a parede do elevador,
tremendo.
— Isto não pode estar acontecendo. Não pode! Preciso acordar agora.
Kara, você precisa acordar!
— Você está morta, senhorita.
Kara abriu os olhos. A palavra morta ecoou em seus ouvidos como uma
piada doentia. O peso das palavras dele começaram a oprimi-la. Ela lutou contra
o avassalador sentimento de pânico.
— Não estou morta — ela resmungou — Estou bem aqui, seu
BABUÍNO estúpido!
—... Chimpanzé! — cuspiu o Chimpanzé 5M51. — Pense o que quiser,
— ele disse, enquanto erguia o queixo. — Mas reflita sobre isto. Você consegue
se lembrar dos eventos antes deste elevador?
Kara se debateu, tentando desesperadamente se lembrar. Fragmentos e
partes relampejaram dentro de seu cérebro: uma luz branca... metal... trevas...
O ônibus.
Kara caiu de joelhos. O ônibus coletivo a havia atingido... pulverizado
seu âmago e esmagado-a como um tomate. Mas então ela se lembrou de outra
coisa, algo que não fazia sentido algum. Estava voltando agora para ela, como
uma memória borrada tornando-se nítida em uma clara imagem. Fulgurou
diante de seus olhos... ela viu um braço se estender e tocá-la durante a batida do
ônibus. Alguém havia tentado salvá-la...
— Viu? Você está morta — disse o prático chimpanzé, e Kara detectou
uma pitada de divertimento na voz dele, como se estivesse se entretendo ao
observá-la debatendo-se em sofrimento e confusão.
Recompondo-se, ela pressionou sua mão contra o lado esquerdo de seu
rosto, não conseguia sentir uma única pulsação. Ela apertou as costelas. Nada.
Segurou seu pulso. Sem pulsação. Sem movimento algum.
— Viu. Sem pulsação. Sem coração... Você está morta — declarou o
chimpanzé novamente. Kara sentiu vontade de esmurrá-lo.
Mas antes que pudesse entender o que estava acontecendo, ela foi
desequilibrada quando o elevador parou abruptamente.
— Nível Um. Orientação! — O chimpanzé anunciou.
— Espere! — Kara se afastou da parede do elevador e cambaleou até o
chimpanzé.
— Não compreendo. O que é a Orientação?
Com seu dedo ainda no botão, ele virou a cabeça.
— Orientação é onde todos os novos AGs são categorizados.
Kara olhou estupidamente para os olhos amarelos do chimpanzé 5M51.
— O que são AGs?
— Anjos da Guarda.
— Hã?
Kara ouviu o ruído de portas se abrindo. Um esboço de sorriso se
delineou nos lábios do chimpanzé. Ele ergueu o braço e apertou a mão dele contra as costas dela.Então ela voou para fora do elevador.

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Marcada,guardiões De Almas
General FictionCapítulo 1 Renascida - Espere por mim! - Kara corria pela Saint Paul Street. Ela apertava o telefone celular contra sua orelha com a mão suada. - Estarei aí em dois minutos! Suas sapatilhas negras de balé faziam ruído nos paralelepípedos, enquanto e...