Capítulo 2

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Atualmente...

Passei a ser uma bailarina sem pernas; sem movimentos. Passei a ser a escuridão que nunca conheceu a luz. Lembro-me das palavras de minha mãe, tão amistosas quanto um limão ácido e amargo.

– Talvez não temos o que merecemos, mas no futuro recebemos o que merecemos.

Lembro-me de sua voz calma, mas seu espírito sempre agitado, nunca gostando de estar parada. Sempre havia algo a ser feito, ou a ser dito. Mas agora, tudo o que sobrou foram cinzas, como se tudo tivesse virado cinzas dentro de um cinzeiro empoeirado e velho.

Escutando Edvard Grieg's Solveig's Song, a fim de acalmar minha alma perdida e solitária, pensava o que seria da minha vida a partir de agora. Sem ninguém, em um mundo desconhecido, sem saber para quais braços correr em busca de consolo ou abrigo.

Dei alguns passos até o espelho, que dava-me a visão de uma menina de luto, desgrenhada e com olhos inchados de tanto chorar. Cabelos lisos e mal arrumados. Posso sentir o cheiro deles em casa. Posso ouvir seus risos do outro lado da porta, ou o correr de minha irmã menor pelo corredor enquanto minha mãe grita para não faze-lo. Sem me dar conta, vejo-me cair de joelhos, ainda me encarando naquele estúpido espelho.

Deus... Foi tudo o que me sobrou. Apenas cinzas e uma casa gelada.

No andar de baixo, estava a velhinha dos gatos, nossa vizinha Lucinda. Ela me levaria até o cemitério para o enterro e depois só deus saberia o que iria me acontecer.

Meu nome é Catharina, tenho 16 anos, em breve 17. Sem parentes próximos e atualmente órfã. Meus pais e Jully, minha irmã, morreram em um acidente há menos de quatro dias e a falta que sinto é maior que a dor que sinto. Algo que não tem explicação, só sinto. Apenas sinto.

Nesses últimos dias, estou vivendo trancada em meu quarto, a base de comprimidos e calmantes para dormir, tentando anestesiar a dor que meu coração e meu corpo carregam. Não tenho comido direito e sinto que posso desmaiar a qualquer momento. Não sei o que me segura na terra dos vivos, nem o que me da forças para ir vê-los sendo enterrados e ficando cada vez mais distantes de mim. A realidade de suas mortes ainda não estava presente, a ficha ainda não havia caído, parecia mentira. Eu queria que fosse mentira.

Limpo as lágrimas que teimam em cair, faço um esforço para levantar daquele assoalho gasto de madeira. Sinto meu corpo tremer, talvez de medo e apreensão.

Agora tocava a trágica música dos lagos dos cisnes. Não aguentei desabei novamente em minha cama. Me lembrei de minha doce Jully e seu teste de Balé. Ela queria ser igual as moças que assistia nos filmes. A dor era imensa que eu poderia sentir meu cisne branco e o negro brigando e sendo massacrados aos poucos em meu peito.

Chorei por um bom tempo. O despertador do meu celular começou a tocar. Não havia ninguém para ligar, nem mesmo para se importar com alguém como eu.

Levantei da cama e peguei o celular desligando a música. Minhas lágrimas deveria estar secas de tanto que eu choro a cada instante de que me lembro dos momentos ou algo relacionado a minha família. Eu não aguentava mais aquela casa, estava se tornando meu inferno particular, minha própria tortura, não fisicamente, mas mentalmente. A dor, era inexplicável.

Peguei o calmante e o tomei bebendo um pouco de água. Logo me deixaria calma o suficiente para não chorar como uma desesperada. Abri a porta de meu quarto e segurando nas paredes do corredor, olhei para a casa fria e vazia com as portas dos quartos abertas. Mas eles não estavam lá.

– Por que? Por que... – Eram perguntas que rondavam minha mente a cada instante que se seguia. Eu queria desabar ou me dissolver, como uma espuma ao mar. – Por que me deixaram... Porque me deixaram?

Naquele momento não havia mais solidão, me veio raiva e rancor por me deixarem. Entrei no quarto de Jully e olhei seu quarto intocável, arrumado e cheirando a lavanda que agora aos poucos ia embora, dando espaço ao cheiro de nada, de um vazio sombrio solitário, nada acolhedor.

Sentei em sua cama e fiquei encarando o quarto enquanto as lágrimas teimosas insistiam em descer e embasar meus olhos.

– A culpa foi sua... Sua... Por que essa merda de audição tinha que ser logo naquele dia... Por que... – Bati na cama com força, como se eu pudesse atingir Jully. – Vocês foram embora... E eu... Eu fiquei... Eu fiquei... Por favor... Voltem, me digam que é apenas uma brincadeira de mal gosto, que foi um teste para ver se eu conseguia ficar sozinha em casa sem colocar fogo na cozinha... Por favor... Tirem essa dor de mim... – Quando dei por mim, estava abraçada ao meu corpo, gritando por meus pais e Jully.

A minha raiva, rancor, e os sentimentos de culpa, angustia e medo, me fizeram querer destruir todo aquele quarto. Apenas levantei e peguei um dos retratos de Jully o jogando no chão, como pirraça em busca de alguma repreensão de mamãe. Esperei, mas nada veio. Nenhum som. Nenhum som. Peguei a foto de Jully e a pus no peito. A dor só piorava. A cada instante sentia a vontade de ir junto a eles e nunca, nunca mais voltar.

Saí do quarto com a foto próxima ao peito, desci as escadas tentando ignorar a dor dilacerante. Eu não tinha mais um ancora para sustentar-me aqui. Na sala estava a senhora dos gatos com um olhar distante. Fiz um barulho com a garganta e ela me deu um sorriso acolhedor cheio de pena e dor.

– Boa tarde, minha jovem. Sinto muito por sua perda. Espero que tenha gostado de meu tempero. – Ela tentou puxar assunto.

Nesses últimos dias, ela trouxe comida para mim. Por um lado é bom, por outro eu queria morrer e definhar em meu quarto junto a dor.

– Obrigada, Lucinda. Estou pronta para ir.

– Tudo bem, vamos, querida.

Ela colocou sua mão em minhas costas e me guiou até a porta. Avistei seu fusca negro parado em frente a minha casa. Morávamos em um condomínio de classe media. Onde não havia portões, apenas ruas, casas e segurança.

Ela era uma senhora de cinquenta e poucos anos, cabelos negros e dona de grandes olhos castanhos e expressivos. Ela tinha uns cinco gatos e era viúva. Tinha alguns filhos, porém nunca vieram visita-la, a não ser seu neto, Gustavo.

Entramos em seu fusca e ela dirigiu até o cemitério. Agora havia me dado conta de que deixei o som ligado em meu quarto, mas agora, nada mais importava. Nada mais.

Coloquei meus óculos escuros e encostei a cabeça no vidro do carro deixando lágrimas lentas descerem por meu rosto.

– Chegamos, menina. – Ela costuma me chamar de Menina, criança ou querida. Era uma forma carinhosa.

Ela tinha uma voz doce e suave. Ela é alto e magra e sempre usa suas joias e roupas antigas.

– Obrigada, Lucinda. Por tudo. – Foi tudo o que eu disse dando um breve sorriso vendo que já haviam começado o enterro. Alguns amigos estavam presentes enquanto os caixões eram colocados para baixo. Meu coração se apertou, Lucinda ficou ao meu lado olhando a mesma cena que eu. Por uns breves segundos minha cabeça pifou. Eu queria correr, manda-los parar para não mata-los, para não sufocar seus corpos, e foi isso o que eu fiz.

Corri gritando para pararem. Um único caixão parou, era o de minha mãe. Mandei que abrissem, seu corpo estava começando a cheirar mal, suas roupas coloridas e seu batom carmesim vinho estavam estampados em seus lábios. Dei passos lentos até seu corpo, segurei em sua mão fria e bem ali, minha ficha caiu.

Eles nunca mais voltariam. Estavam todos mortos. Todos.

Agora, tudo o que sobrou deles, foram histórias, fotos e eu. Apenas eu.

Eu estava sozinha, eles nunca mais voltariam. Percebi afogando-me na dor e nas lágrimas. A espuma do mar, queria ser dissolvida.


Amaldiçoada - Anjo infernal - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora