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Não sei por quanto tempo eu estava ali, observando o calendário, na cozinha. Talvez, por mais de uma hora. Tudo o que eu queria era um pouco de espaço e, inacreditavelmente, a cozinha estava silenciosa, ideal para o meu refúgio. Era somente eu e o calendário à minha frente. Minha mãe tinha uma mania de deixar calendários espalhados pela a casa a fora. Um dos seus passatempos favoritos era colecionar as imagens que vinham junto. Uma mania estranha, eu sei, mas era a mania dela, e ela era feliz assim. O enorme calendário, colado atrás da porta da cozinha mostrava um casal com roupas de época, sentado em um jardim florido. A grama era tão verde que eu tive que tocar para ver se era real. O choque dos meus dedos no papel sem vida me causou uma sensação desconfortável. Uma sensação de querer tocar algo inatingível, algo que por mais que se tentasse, nunca seria alcançado. Apesar de me sentir uma boba, por ficar contemplando uma foto por horas, o que ainda me intrigava era o fato de não ver o rosto do modelo. Ele estava de costas, com os cabelos revoltos contra o vento, abraçado à mulher que sorria como se tivesse ganhado na loteria. Ela parecia tão feliz, como se o simples fato de amar alguém, fosse melhor do que qualquer prêmio. Aquela imagem, embora estivesse ali colada na cozinha durante todo o ano, me deixou um pouco perturbada. Era como se ela tentasse me dizer algo que eu precisava ouvir.

Eu respirei fundo, e tomei mais um gole do meu suco de pêssego, que pelo tempo que estava sentada naquela cadeira, já estava quente. Era só o que me faltava, conversar com uma foto velha colada na parede. Joguei o restante do liquido fora e enquanto lavava o copo, me preparei mentalmente para o que viria a seguir. Em poucos instantes, minha grande e enorme família invadiria o pouco de privacidade que me restava. Todo o ano era a mesma coisa. A casa lotada, brigas para dividir o único banheiro, ter ceder a cama para o tio folgado que esqueceu de trazer o colchonete, crianças ensandecidas correndo pela casa a fora sujando tudo, comida e música em todos os cantos da casa... Esses eram alguns dos inúmeros transtornos de ter um batalhão como família. O pior de tudo, o mais insuportável, era a junta de parentes que fazia questão de fazer uma rodinha pra me interrogar sobre o motivo de eu não ter um namorado. Eu necessitava de muito preparo psicológico. E ficar um tempo sozinha em um ambiente calmo, era minha  técnica de relaxamento. Ainda sim eu não estava preparada. E acho que nunca estaria. Mais um ano se findava, mais um encontro familiar me aguardava, e eu ainda não me acostumara com os comentários e insinuações do restante da minha família sobre minha vida amorosa. Era tão cansativo e desgastante ter que explicar que eu não tinha um namorado por opção e que era feliz sozinha. Ninguém entendia que eu preferia dedicar meu tempo à faculdade e ao trabalho até encontrar a pessoa certa. Todos me olhavam com pena quando me viam sem alguém. Para minha família era um crime eu ainda estar solteira. Eu não tinha culpa se todos os meus primos adultos estavam casados. Cada um era feliz ao seu modo. E eu estava feliz sozinha.

Não bastava ter a casa entupida de gente, eu ainda tinha que aturar as brincadeiras sem graça do tio Roni. Eu não era mais uma criança para rir de suas piadas sem graça. Para falar a verdade, ninguém ria de suas piadas.  Ninguém! Nem os meus primos gêmeos que faziam festa com qualquer coisa. Ainda havia a minha prima Lauane que amava se gabar por sua carreira de modelo. Apesar de linda com aquela pele que parecia porcelana e os olhos verdes e brilhantes, sua carreira não era o mar de rosa como ela afirmava. Fazer algumas fotos para anúncios não era como desfilar em Paris. Mas para ela, todos morriam de inveja de seu sucesso, inclusive eu, que preferia meter a cara nos estudo e tentar fazer uma carreira duradoura. A tia Luiza, acha que Lauane é a perfeição em pessoa, e vivia me comparando com sua amada filha. A noite seria uma daquelas!

-Luna, eu estava te procurando! O pessoal já chegou. – mamãe veio animada com Isa em seu colo. A netinha Isadora era o seu xodó. Nunca vi avó mais coruja. Seus olhos sempre brilhavam quando Isa a chamava de vovó. Mas não tinha como resistir aos encantos da princesinha, que arrancava sorrisos de qualquer carrancudo, ao vê-la tentar dar seus primeiros passos.

-Vim tomar um suco. – Menti, pegando Isa de seu colo. Minha mãe me olhou desconfiada, mas não disse nada. Ela sabia o quanto esses encontros familiares me deixavam incomodada. Por mais que eu reclamasse, ela sempre vinha com aquele papo " toda família é assim", o que me deixava ainda mais indignada.

- Sua avó está tão feliz! Ela adora a casa cheia. – minha mãe tentou sorrir, mas seus olhos tinham resquícios de saudade. Eu sabia em quem ela pensava. Eu também sentia a sua falta. A casa estava cheia, mas faltava alguém que infelizmente não estava mais presente. Toda aquela agitação se tornava oca, vazia, sem sentido. Não importa quanto o tempo passasse, ele sempre faria falta.

- Bora encher a cara de doces? – Fiz uma careta para Isa que sorria animadamente enquanto batia palminhas. Recompus-me antes que minha mãe percebesse o real motivo do meu desânimo com a festa. O que eu menos queria era que ela e vovó se entristecessem.




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