CAPÍTULO XX MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS

2.2K 29 0
                                    

Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se,  mas não foi para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro Céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio,  ao meu  amigo.  E então  disse  de  mim  para  mim:  "Prometo  rezar  mil padre-nossos  e  mil  ave-marias,  se  José  Dias  arranjar  que  eu  não  vá  para  o seminário".

A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao Céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O Céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.

— Mil, mil, repeti comigo.

Realmente,  a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse   os   atrasados   todos.   Deus   podia   muito   bem,   irritado   com   os esquecimentos,   negar-se  a  ouvir-me  sem  muito  dinheiro...  Homem  grave,  é possível  que  estas  agitações  de  menino  te  enfadem,  se  é  que  não  as  achas ridículas.  Sublimes  não  eram.  Cogitei  muito  no  modo  de  resgatar  a  dívida espiritual.  Não  achava  outra  espécie  em  que,  mediante  a  intenção,  tudo  se cumprisse,  fechando  a  escrituração  da  minha  consciência  moral  sem  deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra  Santa,  tudo  o que  as velhas  escravas  me  contavam  de  promessas célebres,  tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito.  Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...

Dom CasmurroOnde histórias criam vida. Descubra agora