CAPÍTULO XXV NO PASSEIO PÚBLICO

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Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se   melancolicamente   no  caminho  que  vai  da  porta  ao  terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:

— Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.

— Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho

Pádua; não se lembra?

— É verdade, mas foi tão de passagem. . .

— Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu;  mas ouça-me,  já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.

— Mas eu andei algumas vezes...

— Quando era mais jovem; era criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando  confiança.  D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que  o Diabo  lhe  deu...  Você  já reparou  nos  olhos  dela?  São  assim  de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade  e estima não bastam, e as outras qualidades  perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...

—  Perdão,  interrompi  suspendendo  o  passo,  nunca  ouvi  que  falasse  mal  do senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas câmaras."

José Dias sorriu deliciosamente,  mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:

— Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.

Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.

— Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns instantes.

— Pois que outra coisa, Bentinho?

— Neste caso, peço-lhe um favor.

— Um favor? Mande, ordene, que é?

— Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou  a perguntar  o que era, sacudia-me  com brandura,  levantava-me  o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.

— Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

— Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente. José Dias endireitou-se pasmado.

— Não posso, continuei  eu, não menos  pasmado  que ele, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptório, como  pode  parecer  do texto,  mas aos pedaços,  mastigado,  em voz um pouco surda  e  tímida.  Não  obstante,   José  Dias  ouvira-o  espantado.   Não  contava certamente  com a resistência,  por mais acanhada  que fosse;  mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

— Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do agregado escancararam-se,  as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos  músculos.  Toda  a cara  dele  era  pouca  para  a estupefação.  Realmente,  a matéria  do  discurso  revelara  em  mim  uma  alma  nova;  eu  próprio  não  me conhecia.  Mas  a  palavra  final  é  que  trouxe  um  vigor  único.  José  Dias  ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:

— Mas que posso eu fazer? perguntou.

— Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede muita vez os seus conselhos,  não é? Tio Cosme  diz que o senhor  é pessoa  de talento...

—  São  bondades,  retorquiu  lisonjeado.  São  favores  de  pessoas  dignas,  que merecem  tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais; por quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro  perfeitíssimo.  Tenho  conhecido  famílias  distintas;  nenhuma  poderá vencer  a sua em nobreza  de sentimentos.  O talento  que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um, — é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.

— Há de ter também o de proteger os amigos, como eu.

— Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter Bentinho no seminário".

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde.

— Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.

— Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão que seja feliz, como merece?

— Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...

Dom CasmurroOnde histórias criam vida. Descubra agora