Prólogo

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O fruto de dois mundos diferentes em língua, cultura e costumes pode chegar a dois extremos: ou descamba para o desastre total ou alça ao mais completo êxito. Apesar destes extremos, é possível alcançar, com algum sacrifício, um ponto de equilíbrio e gozar do melhor de dois mundos. A jovem Louisa Holbrook é um este ponto de harmonia, pois nasceu da união peculiar e inesperada entre duas culturas. Seu pai é um inglês do norte das terras de Sua Majestade, dono de férteis terras, rebanhos de gado e ovelhas e homem com tino para os negócios. O senhor Holbrook veio parar no Brasil como enviado de um grupo de compradores de café que queriam negociar direto com os produtores brasileiros. A oportunidade surgira através de um contato familiar no meio dos compradores de café: o barão de Lochfergus. Já a mãe de Louisa, Júlia, chegara recém-nascida ao Brasil dentro do insalubre porão de um navio negreiro, um dos muitos que partiam de Angola para o Brasil. Os avós maternos de Louisa pertenciam a etnia dos bacongos, que outrora ocupou o vale do rio Congo. Mas, uma vez no Brasil, Júlia, que não era seu nome de batismo, e os seus pais eram mais um punhado de africanos que chegavam para servir de força motora para a economia do império tropical.

Philip Holbrook tomou posse da fazenda Santa Isabel, na região que viria a ser conhecida como Vale do Café, em um mês de julho muito seco. Dois meses após a sua chegada, Holbrook recebeu seu único filho, o pequeno Alexander, que completava seis meses, e a governanta de sua confiança, uma jovem galesa roliça de nome Anna Davies. Alexander era toda a família que tinha no mundo, pois a esposa morrera logo depois da partida de Philip para o Brasil. Além do intendente Nhô Chico, seu administrador, o inglês contava com a ajuda de Pedro Preto, jovem escravo forro de confiança que conhecia a tudo e a todos na região. Em poucos meses, o inglês de porte alto e ares graves ganhou a confiança das famílias de respeito da vila de São Pedro do Vale, que era o vilarejo mais próximo da propriedade de Holbrook. Os homens o convidavam para jantares e saraus, as senhoras adoravam conversar com Philip e as senhoritas suspiravam com a beleza grave e gestos de cavalheiro que tinha. O único fator que causava alguma desconfiança por parte da elite local era o fato de que Philip era a favor da libertação da mão de obra escrava. Nada que o desabonasse frente aos barões locais para quem importava apenas quando iriam ganhar com os ingleses.

Júlia passou os primeiros anos de vida e adolescência trabalhando como escrava de sinhazinha Mariana Godói de Santo Amaro, na Bahia. Com a iaiá e sua mãe, aprendeu as modas e fricotes de mulher rica, a rezar como o povo da sinhá fazia, a coser as roupas da sinhá, a enfeitar a sinhá para as festas e tudo mais que uma escrava de dentro fazia. Quando o sinhô Godói começou a perder dinheiro com o declínio do açúcar, vendeu a escravinha da filha. O novo patrão Francisco Medeiros d'Alburquerque, o barão de Juqueri, a comprou num lote e a levou para as bandas do sul do país. Dos requintes da proximidade de Salvador, antiga capital do império, Júlia experimentou o tempo que se demorava pra passar na fazenda Santa Rita, onde esquentava o lombo na cozinha do barão. Já não era escrava pessoal. Estava relegada a nada honrosa posição de ajudante de cozinha, também responsável por servir o sinhô e a família. O patrão era um homem bom com os escravos, mas seu filho, o jovem João, era descortês e violento. Com o tempo, o moço passou a cobiçar o corpo carnudo de pele de ébano e doces olhos amendoados de Júlia. Tanto quis que quando o pai morreu a primeira propriedade que tomou posse foi o corpo da escrava. Quando pensou em resistir a investida, Júlia foi "colocada em seu devido lugar", levando chutes, tapas e pontapés pelo corpo e depois foi possuída com brutalidade pelo patrãozinho. A ação teve um preço, pago pela escrava que engravidou. Querendo afastar seu pecado, João vendeu Júlia, não sem antes castigá-la com o chicote pelo acinte de ter embuchado. O novo dono era o inglês da fazenda vizinha para onde a fragilizada e violentada Julia foi levada. Foi assim o caminho de duas culturas se cruzaram sob o signo do café.

Júlia e Philip não se encontraram no primeiro dia que ela se mudou para a fazenda Santa Isabel. Antes de entrar em serviço, as criadas da casa grande deram banho, arranjaram roupas novas e limpas, alimentaram a nova ama de leite do filho do sinhô. O médico foi chamado para verificar a saúde de Júlia, que perdera a criança que trazia no ventre dias antes. O administrador apresentou as condições de trabalho: ela seria livre, receberia salário, comida e morada para cuidar do filho do patrão. Só após está pequena maratona, Júlia foi apresentada ao sinhô Holbrook, um homem com brilhantes olhos cinzas e de aspecto gentil.

Os dias passavam tranquilos na fazenda Santa Isabel. Philip viajava por toda região selando acordos com barões do café em nome dos comerciantes ingleses. Enquanto isso, Júlia se afeiçoava ao pequeno patrão. Certa noite fria, meses depois da chegada da negra, o guloso Alexander de grandes olhos azuis mamava despreocupado enquanto a ama cantava músicas de ninar com sua voz melodiosa. Recém chegado de uma viagem, Philip estava a porta do quarto, pronto para ver o filho, quando percebeu pela fresta aberta, a cena terna da mulher que se doava ao filho em meio a dor de um aborto.

Dia após dia, Holbrook passou a ver com bons olhos o cuidado e o carinho de Júlia com seu filho. Ele também percebia o olhar amendoado, o sorriso faceiro com um toque de dor, o andar leve e gracioso e o sotaque arrastado daquela criada que ia de um canto a outro com Alexander em seu regaço. Quanto mais tempo passava na casa grande, mas crescia a admiração de Holbrook pela negra de aspecto pequeno e silencioso. Era uma admiração respeitosa que causava um sorriso discreto no canto dos lábios daquele inglês todas as vezes que ele a via. Ele se interessava pelo progresso que ela estava fazendo nas aulas de leitura e escrita que a senhora Davies ministrava aos criados mais jovens. Todos os dias, quando estava em casa e Alexander já estava dormindo, Philip lia para Júlia e contava para ela as lendas de sua terra. Por sua vez, ela lhe contava suas penúrias e percebia que o sinhô também tinha suas marcas e cicatrizes. As dores da vida os uniram em um carinho mútuo e respeitoso, que, depois de algum tempo de hesitação, se transformou no desejo de estar junto.

Passaram-se dois anos de caminhadas ao entardecer, cantigas de ninar para Alexander, leitura de poesias e refeições juntos, antes de Philip e Júlia decidirem se casar. Ele sabia que a sua posição na sociedade ficaria em jogo, mas que tal passo em nada atrapalharia seu trabalho. Por seu lado, ela tinha conhecimento de que ficaria em um limbo social ao ser tomada como esposa de um sinhô. Não seria considerada mais escrava, tão pouco seria sinhá. A verdade é que havia um sentimento sólido e crescente entre os dois. Sentimento este que colocava de lado quaisquer diferenças sociais e dificuldades que estas lhes iriam impor.

Quando o assunto começou a se espalhar, a vila entrou em ebulição agressiva. "É um acinte", bradavam os velhos. "Uma vergonha", sussurravam as moças com certo despeito nas rodinhas de conversa nas ruas. "Pecado", se benziam as beatas após os sermões inflamados do padre local que condenava o casal ao fogo eterno do inferno. Os barões do café nada diziam, pois o homem era enviado dos ingleses e, no fundo, alguns desses queriam fazer o mesmo com as fogosas escravas que mantinham junto a si. As sinhás falavam entre os dentes que sempre souberam que aquele inglês era um subversivo. As iaiás, as filhas dos barões, suspiravam achando toda essa história por demais romântica.

Apesar do frisson revoltoso da sociedade da vila, o casamento aconteceu na casa grande sob as bênçãos da igreja anglicana com o mesmo reverendo que batizara Júlia na fé do marido dias antes do enlace. Os Holbrook viviam felizes, apesar da reclusão de Júlia, que se dignava a caminhar apenas pelo território da fazenda, onde era respeitada e querida pelos criados da propriedade.

O destino reservava uma surpresa para o casal que chegou na forma de telegrama com o brasão real. O governo britânico reconhecia o trabalho de Philip no Brasil e o convidava para cuidar dos interesses comerciais do Reino Unido na Jamaica, onde o império começava a incentivar culturas como a do café e a do rum. O documento era fruto de uma intervenção do agora cunhado de Philip Holbrook, o barão de Lochfergus. Como nunca se recusa o chamado de Sua Majestade, Philip, Júlia e Alexander partiram das terras brasileiras para o vasto território do Império Britânico, levando consigo sem saber o pequeno fruto de duas culturas: Louisa.


Sob o signo do café (PRÉ-VENDA NA AMAZON A PARTIR DE 29/4)Onde histórias criam vida. Descubra agora