Aos sete anos
Você tem medo do escuro? Eu tenho. É de noite que o homem mal aparece e me faz ter muito medo da escuridão. A noite é quando tudo fica esquisito e a minha casa não parece mais o mesmo lugar onde eu moro com a mamãe e o papai. Já te aconteceu uma coisa muito ruim durante o dia? É, comigo também não. Mas, quando é de noite, tudo que é ruim acontece pra te apavorar e te fazer perder o sono. Desculpa, quer dizer, eu não perco exatamente o sono quando acordo chorando. Eu fico com medo de voltar a dormir e encontrar com aquele homem assustador. Só que as vezes, quando eu acordo com o meu coração batendo muito rápido, é como se o meu sonho ruim se transformasse em realidade. O moço malvado aparece na minha frente e abre um sorriso esquisito. Ele cheira engraçado, como aquelas bebidas que só os adultos podem beber. Ele fala estranho e me olha de um jeito diferente. Outras vezes, ele traz uma surpresa, algo de que gosto muito. Um carrinho, ou um pirulito. Ele diz que gosta de me dar presentes porque sabe que serei bonzinho e que não vou começar a chorar feito uma criancinha. O problema, é que eu acabo ficando muito assustado e estrago com toda a sua diversão.
Mamãe costuma dizer que durante o dia toda criança precisa brincar. Mas, quando é de noite, toda criança precisa dormir. Às vezes, quando o monstro aparece, ele diz que estava com saudade de falar comigo porque somos melhores amigos. Ele sempre ri baixinho e fala que está na hora de jogarmos algo especial.
-Mas a mamãe disse...
-Ssshhh! - O moço fala um pouco irritado, tentando cobrir a minha boca com a sua mão. Fica difícil respirar porque o cheiro da bebida é misturado com açúcar. Fico sempre enjoado quando ele se aproxima de mim. - A mamãe não precisa saber que brincamos a noite. É um segredo entre você e eu.
Não entendo porque o homem precisa manter aquele jogo como um segredo. Não entendo porque ele gosta de manter isso escondido da mamãe. Quer dizer, se estamos brincando, por que eu não posso convidar a mamãe pra nos fazer companhia? Talvez, ela até goste de fazer essas coisas porque já tá grande que nem o monstro de rosto apavorante. Ele tá sempre contando que quando criança o papai dele gostava de fazer essas mesmas coisas. Ele me disse que quando ficou maior passou a gostar daquela brincadeira e que tudo o que deseja é me fazer gostar desses momentos que passamos juntos.
Algumas noites, quando o cara malvado me acorda, eu falo que não quero brincar com ele. Falo que podemos nos divertir brincando de: carrinho, pega-pega ou esconde-esconde. Mas. ele fala que essas brincadeiras são de bebezinhos e que eu já sou grande e preciso aprender coisas de meninos bonitos e inteligentes. Eu as vezes choro porque fico com muito medo. Ele insiste tanto para que eu faça o que ele quer, só que de um jeito tão apavorante, que acabo fazendo a sua vontade.
-Você não quer que a mamãe apareça e fique brava com a gente, não é? - Ele fala todo animado porque decidi fazer a sua vontade. - Já imaginou como ela vai ficar chateada ao saber que não a convidamos pra jogar conosco?
-Você brinca com ela desse mesmo jogo? - Eu pergunto com um pouquinho de medo porque o monstro tá muito perto de mim.
-As vezes a mamãe brinca comigo.
-E por que não podemos chamar a mamãe pra brincar com a gente agora?
-Porque eu gosto mesmo é de brincar com você.
Hoje ele trouxe um daqueles pirulitos coloridos. Você sabe, aqueles gigantescos que a gente nunca consegue comer de uma única vez porque o doce chega a doer os dentes. Meu quarto tá cheirando à açúcar. Acho que vou vomitar.
-Eu sei que esta noite você será um bom menino enquanto brincamos em silêncio.
Descobri que estava encrencado quando vi o monstro sorrir. Fiquei com muito medo e tudo o que consegui pensar foi em me esconder debaixo do lençol. Eu não queria jogar. Não queria me sentir esquisito. Naquele dia eu não tinha feito nada de errado. Comi toda a minha comida. Até tomei banho sozinho, sem choramingar. Deixei a mamãe orgulhosa porque me comportei muito bem na escolinha, dividindo meu lápis de cor com a menina mais chata da classe. Fui um bom menino. Eu juro! Mais uma vez eu tentei pedir para que brincássemos de outra coisa, algo que não fizesse eu ficar com medo.
-Por favor, papai. Eu não quero brincar. Dói muito quando você...
Segurei bem forte o lençol só que não deu muito resultado. Tudo foi muito rápido e não entendi como fui parar no seu colo.
-Agora seja bonzinho e faça o papai ficar feliz com o seu comportamento.
De repente ficamos bem quietinhos. O homem passou uma de suas mãos por meus cabelos. Ele me balançou para a frente e para trás, como se tentasse me colocar para dormir. Só que eu não conseguia ficar relaxado. Pelo contrário, fiquei apavorado porque sei que em breve ele vai me fazer sentir dor, muita dor. Ele levou seu nariz grande até o meu pescoço. Ficou me cheirando enquanto fazia uns barulhos estranhos que me davam arrepios. Não conseguia parar de chorar. Não queria ter que mentir pra mamãe no outro dia. Não queria ter que inventar uma história pra não ir pra escolinha. Não podia contar pra ela que fiquei brincando até tarde e que não me sentia bem pra ir pra aula.
-Se você continuar chorando, terei que ser mais duro e sei que não vai gostar.
Tremi. Ele ouviu quando pedi baixinho para que parasse. O que não escutamos foi a porta do meu quarto abrir. Ouvimos um grito. Meu rosto parou no travesseiro.
-Eu preciso me aliviar, Melissa. - Gritou o homem com muita raiva. - E será você quem vai fazer esse trabalho.
Alguma coisa fez um barulhão. O monstro prendeu a mamãe contra a parede e ela não conseguia se soltar. Vi quando eles começaram a brincar. Continuava chorando porque sabia que a mamãe estava se machucando. A culpa era minha por ter feito barulho. Por que eu precisava ser tão mal?
-Querido. - Eu tentei levantar pra correr até onde eles estavam. A mamãe tava muito triste. Estava chorando e com o rosto vermelho. Só que eu não entendia. O monstro disse que pessoas grandes não choram quando brincam desse mesmo jogo. Por que ele mentiu pra mim? - Fica aonde está, meu amor.
Olhei pra mamãe ainda sem saber o que fazer. Sabia que ela não estava gostando da brincadeira porque eu nunca me divirto quando faço aquela coisa esquisita. Só que eu estava tão apavorado, com tanto medo de que fosse capturado por aquele cara assustador, que fiquei com medo de me mexer.
- Fica aonde está, fecha os olhos, coloca as mãos sobre as suas orelhas e começa a cantar bem alto, o mais alto que conseguir cantar.
-Mas, mamãe...
O monstro sorriu quando olhou pra mim. Depois, voltou a jogar. Droga! Por que sou tão medroso? Por que não consigo pedir para que parem com aquela esquisitice? Será que vou ser sempre um bebê?
-Deixa que ele veja, mulher! - dizia o homem com a voz muito alta. - Deixa que ele veja e escute. Quero que ele aprenda que sou eu quem mando aqui dentro e que você me pertence.
Quando meu coração começou a bater muito rápido eu decidi que escutaria a mamãe. Fechei os olhos, coloquei as mãos nas minhas orelhas e sem pensar duas vezes, comecei a gritar a nova música que a tia da escolinha me ensinou na hora do recreio:
A dona aranha subiu pela parede...
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Onde os demônios habitam
RomanceHá demônios escondidos por toda parte. Alguns encontram-se nos pesadelos, outros enfurnados no armário velho, dentro do quarto. Mas, Eric sabia exatamente onde encontrá-los. As pessoas conheciam formas para dissuadi-los, mantendo-os adormecidos, sem...