Quando pequenos, nossos pais dizem que a escola é a extensão de nossas casas. Mas, diferente de como somos tratados entre aquelas quatro paredes, em uma sala de aula somos crianças comuns, como tantas outras que por ali já passaram. Sentamos em nossas carteiras, enquanto escutamos alguém à frente nos dizer o que devemos ou não devemos aprender. Sabemos que a vida nos fornece todo o tipo de informação, entretanto, pais e professores nos obrigam a discernir o certo do errado, como se nem todo o conhecimento fosse válido.
Aos dez anos de idade, a professora nos pediu para que escrevêssemos uma redação sobre a nossa vida em família. Olhei para a folha de almaço e por uns cinco minutos nada fiz. Comecei a me desesperar porque sabia que precisaria manter meu segredo intácto, longe de pessoas curiosas, que certamente me encheriam de perguntas, caso o descobrisse. Havia feito uma promessa na qual jamais revelaria aquilo que estava tão habituado em presenciar. Eu já não era tão criança. Já tinha uma noção maior de mundo e, graças a esta escola que me acolheu quando mais novo, compreendi que o ser humano é feito de imagens, sendo o mesmo o único capaz de reinventar a própria realidade. Somos como larvas de borboleta, constantemente em metamorfose.
-Eric? - a professora se aproximou de minha carteira, abaixando-se para ficar no mesmo nível que o meu. - Algum problema?
Entrei em pânico. Meus lábios estavam ligeiramente abertos. Minha mão apertou o lápis com muita força, fazendo a ponta de meus dedos esbranquiçarem e doerem. Eu devo ter ficado um pouco pálido porque me recordo da mulher à minha frente parecer aflita.
-Está se sentindo bem? Quer dar um pulinho até a enfermaria?
Por um instante a ideia me agradou. Eu poderia dizer que precisava tomar um pouco de ar, ou simplesmente ingerir um remédio para a dor de cabeça. Poderia inventar qualquer outra mentira que pudesse me isentar daquela lição em sala de aula. Mas então, eu me lembrei de que isso não iria me eximir de fazer aquela atividade. Não poderia simplesmente escapar da redação só porque estava com medo de ser descoberto. Se eu não entregasse aquela porcaria, provavelmente a professora começaria a me fazer perguntas sobre a minha casa, sobretudo sobre os meus pais. Se assim eu prosseguisse, em breve tudo viria à tona.
-Não, professora. Tá tudo bem. - disse tentando permanecer com o meu rosto o maior tempo possível na direção da folha em branco. - Eu só estava aqui pensando sobre o tema que a senhora passou.
Ela sorriu. Você sabe, ela abriu aquele sorriso doce que te dói a alma ter que mentir diante daquele tipo de situação. Aquele sorriso capaz de transmitir um brilho inesgotável de confiança, incapaz de duvidar de sua palavra.
-Em que você estava pensando?
Acho que foi a partir desta maldita pergunta que me dei conta de que os professores desconfiavam de que algo não ia muito bem na minha casa. Aquela interrogativa não soou normal. Quer dizer, se fosse qualquer outro aluno que estivesse enrolando para fazer a lição em sala de aula, a professora já teria ordenado para que ele parasse de preguiça e começasse a fazer o que foi pedido. Mas, no meu caso, a forma como a mulher me olhava, como falava comigo em um tom tão baixo que precisei me esforçar muito para escutá-la, aquilo não parecia certo.
A verdade, é que quando minha mãe decidiu mudar-me de escola, eu não ia muito bem nos estudos. Aos sete anos a maioria das crianças aprendia a ler e escrever em um piscar de olhos. No meu caso, o que deveria ser uma tarefa simples acabou se transformando em um problemão. Eu não me recordo muito bem o que aconteceu. Eu lembro que a professora se esforçava muito para fazer-me entender cada palavra, cada sentença, cada parágrafo. Lembro que olhava pros números e pensava: "Okay, e agora?". Quando cheguei à nova escola, ficou decidido que eu repetiria aquele ano porque estava demorando um pouco mais para aprender. E, desde então, os professores cismavam em ficar no meu pé.
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Onde os demônios habitam
RomanceHá demônios escondidos por toda parte. Alguns encontram-se nos pesadelos, outros enfurnados no armário velho, dentro do quarto. Mas, Eric sabia exatamente onde encontrá-los. As pessoas conheciam formas para dissuadi-los, mantendo-os adormecidos, sem...