Capítulo 1: Um brinde ao mundo que um dia tornará a minha vida menos doentia

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Chega a ser hilário, para não dizer ilusório, o modo como as pessoas conduzem suas patéticas vidas e as suas respectivas relações sociais. Engraçada, para não chamar a coisa toda de trágica, a capacidade que muitos têm em montar um teatro a céu aberto, atuando vinte e quatro horas ao dia, sete dias por semana, durante trezentos e sessenta e cinco dias ao ano. Se a arte imita a vida, ainda não entendi em que ponto uma termina e a outra começa.

Às vezes, quando saio de casa, fico observando atentamente as pessoas que caminham apressadas pelas ruas do bairro onde moro. A maioria delas te olha esquisito, como se ao encará-las a porta para os seus segredos mais íntimos fosse aberta e eu os passasse a conhecer detalhadamente, enquanto delicio-me com os seus temores. Contudo, há um menor número de indivíduos que nem ao menos possuem coragem de olhar para a frente, para onde você está parado. Esse tipo de gente prefere encarar o chão, os sapatos, ou até mesmo o celular que constantemente o conecta ao mundo. Irônico como esse tipo de gente roga para que ninguém seja capaz de ver através de sua expressão cansada as cicatrizes que a vida deixa sobre elas.

A partir dos sete anos de idade comecei a entender que os adultos procuram artifícios para disfarçar quem de fato são. Eles trajam uma máscara invisível e instantaneamente transformam-se em seres perfeitos, desejáveis por qualquer um que não os conheça realmente. Suas expressões severas e ardilosas tornam-se belas e doces, assemelhando-se a alguém que ama a tudo e a todos neste mundo. Todavia, é como se ao retornar às suas famílias, entre quatro paredes, a máscara se dissolvesse e a podridão corrompesse um homem e o transformasse em um verdadeiro monstro. Ainda quando criança, a vida me mostrou que as pessoas não estão interessadas em suas histórias. Bem, quer dizer, as pessoas filtram informações a seu respeito e cabe a elas eleger o que deve ser assimilado. Eu optei por criar algo novo, algo que não dizia muito sobre mim, ou melhor, algo que parecesse pertencer a mim, quando na realidade eu em nada me via. Porque as pessoas querem conhecer homens e mulheres felizes. Nada de seres pobres de espíritos, sofredores e irrelevantes, como eles próprios já se sentem constantemente. Quanto maior a ilusão, maior o poder que você tem sobre elas e suas expectativas infelizes de mundo perfeito.

Santos é a típica cidade litorânea que o convida a caminhar por sua orla florida, com diversas espécies de flores e árvores. Os sete canais que cortam a cidade dão a falsa sensação de que todos os bairros estão colados uns nos outros, como dez quilômetros equivalessem a um. O local onde moro é distante de onde estudo. Sou do Marapé e minha escola fica no Boqueirão. Vivo em um bairro bem residencial, onde pequenos prédios de três andares ainda mesclam-se às casas térreas e sobrados de aparências humildes. Minha casa é particularmente pequena, mas nem por isso pouco cuidada. Minha mãe gosta de cultivar flores do campo em nosso jardim de entrada. Ela adora passar suas manhãs de sábado regando os delicados crisântemos coloridos, enquanto assobia uma daquelas canções bem antigas. Talvez seja o modo dela tentar embelezar algo naquele lugar que está fadado à feiura. Não que a minha casa seja feia, nem nada do gênero. Eu simplesmente não gosto muito daquele lugar e a imundice, que ano após ano deixa seus cômodos repletos de manchas insolúveis de más recordações.

Eu estava particularmente adiantado naquela manhã de segunda-feira. Não costumo me atrasar. Mas, tratando-se do primeiro dia de aula, algo dentro de mim fez com que eu saísse mais cedo de casa e rumasse para o que seria o meu último ano no Ensino Médio. Esquisito. Eu sempre disse que não via a hora de terminar o colégio e toda aquela chatice matinal. Sempre falei, para quem quer que estivesse interessado em escutar, que eu dava a mínima para a escola e as pessoas que ali frequentavam. Só que agora, enquanto vejo os prédios moverem-se diante de meus olhos, conforme o ônibus segue seu percurso habitual, tento entender o que me fazia ansiar tanto por este acontecimento e o que almejo daqui por diante. Porque, só agora eu entendi, que talvez o tempo que passei estudando naquela escola, desde os meus sete anos de idade, tenham sido, na realidade, os melhores da minha vida, apesar dos pesares. Pode parecer tolice, ou até mesmo imaturidade, mas até um tempo atrás eu sempre via aquele lugar como uma espécie de prisão, em que diariamente preciso pagar por meus pecados. Agora, é como se meus olhos se abrissem diante de uma manhã esplendorosa, de um céu em tom celeste inebriante, mostrando-me que foi graças àquele lugar que cresci como pessoa, onde pude tirar o peso da minha loucura.

Onde os demônios habitamOnde histórias criam vida. Descubra agora