Aline

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A reunião com os pais, os alunos e a diretora foi marcada pro sábado à tarde.
Nunca me senti tão mal em toda a minha vida. Não, não me arrependi de ter batido naquele cretino. Não havia outra coisa a fazer. Pelo menos não pensei em nada melhor.
Uma porção de gente veio me dizer que não se resolve nada com violência. Tive vontade de bater em todos eles também. Claro, depois até me arrependi um pouco do que aconteceu, mas não dava pra imaginar onde a coisa ia parar.
A turma foi suspensa dous dias e, como um deles havia uma prova de Matemática, todo mundo ficou com zero. Eu, que já estava péssima, fui direto pra prova final. Mas, pior, havia gente que na certa repetiria o ano por causa daquela confusão. Daí a aflição dos pais.
Geralmente a maioria deles não aparecia nas reuniões semestrais, mas naquela foram todos. E fomos chamados também.
Parecia um tribunal.
Nos sentamos juntos num canto, acuados pela diretoria e pelos pais, possessos, todos querendo saber o que aconteceu afinal.
É. Eles não sabiam. E isso foi uma coisa muito bonita da nossa parte.
No primeiro momento o inspetor chamou o diretor, o Ruas, um cara até legal, mas que não se conforma em ser careca e fica puxando a toda hora o cabelo pra frente... Não tinhamos como esconder. Parecia que uma manada de búfalos passou pela sala. Nem uma só carteira em pé, pessoas machucadas, um horror. O inspetor tinha visto o coitado do Rodrigo ameaçando o colega com o esquadro e colocou a culpa nele. Começamos a rir.
O Felipe disse que o culpado era o professor que nos fazia andar por ai com materiais tão perigosos, e o João conpletou, pedindo a exigencia de porte de arma pra se usar o compasso e o esquadro. Foi demais. A turma caiu na gargalhada. Até o Renato, lá com aquela cara idiota toda arrebentada.
O Ruas saiu batendo a porta, gritando que estavamos suspensos.
Ja tinhamos combinado praia pro dia seguinte quando nos lembramos da prova de Matemática. Ai pintou a maior depressão. A Lidia até chorou. Era uma das que talvez repetisse o ano. Bem feito.
Não. Coitada.
O primeiro a falar foi o Ruas. Fez um relato da situação e explicou que aquela reunião era pra que, diante dos pais, os alunos afinal revelassem os motivos da "manifestação de selvageria, dos atos de vandalismo..."
Eu estava sem dormir há três noites, desesperada com a possibilidade de a coisa toda ficar esclarecida, de alguém por exemplo pedir a palavra e contar.
"Simples. A Aline aqui deu um tapa na cara do Renato porque ele está espalhando que transou com ela".
Fiquei lá no meu canto, com as pernas tremendo. Aquela era a verdade. O que eu não sabia é que a verdade é uma das ultimas coisas a serem ditas numa reunião e que quase sempre as pessoas têm outros compromissos antes disso e têm de ir embora mais cedo.
Um pai pediu logo a palavra e falou uns vinte minutos sobre a situação do ensino brasileiro, as estatísticas da criminalidade, o mau exemplo dos políticos. Depois, uma mãe começou a contar a longa história da sogra que morreu de câncer generalizado pra no final provar "os reflexos dos problemas familiares no comportamento desviante dos filhos". Uma outra, exaltada, rebateu dizendo que o "que estava em questão ali era o colégio e não a familia". Foi aplaudida. O diretor disse que não, que por isso os chamou: o problema era de todos. Um pai mais cordial pediu a palavra educadamente e precisou de meia hora pra dizer, citando Aristótoles, Platão e toda aquela turma grega, que "o que estava em discussão ali eram príncipios fundamentais de cidadania, e que por isso seria muito importante primeiro ouvir os alunos".
Uma mãe gordinha gritou que estava preocupada mesmo era com o zero que a filha tirou em Matemática, mas, como isso era a verdade, foi cortada e nos "concederam a palavra".
Haviamos escolhido o Eduardo pra fala pela turma. Tudo bem, era o mais velho, representante da classe, repetente, e o dizia estava certo, tinha coerência, mas o.problema é que ele era gago.
Os adultos tomaram aquilo como uma afronta, mas como o pai dele também estava lá, mais orgulhoso que aflito, ninguém quis se meter.
Sorte minha. O Eduardo demorou mais meia hora pra contar a versão que a turma combinou.
A versão era a seguinte: dois meninos tinham descutido por futebol, um quebrou a régua no outro, começou o empurra empurra e a coisa cresceu.
O Ruas ficou tão exasperado com a demora do Eduardo que passou a mão na testa e descobriu a careca. No final, falou:
- Tudo bem. Tudo bem. Mas agora eu quero saber, quem quebrou a régua de quem. Quem começou essa...
Todos aqueles pais ali na verdade consideravam seus filhos inocentes e queriam descobrir os culpados, assim o professor de Matemática daria outra prova pro resto da turma. Só precisavamos entregar dois ou três colegas. A idéia era essa.
Mantivemos a mentira.
Mas aí um pai tomou a palavra e não a largou por quase uma hora. Disse que a declaração na verdade era uma coisa horrivel, mas que em certas ocasiões... E ai começou a citar um número infindável de situações e dilemas históricos, passou por todas as guerras importantes dos últimos séculos até chegar nos anos da ditadura militar brasileira, tudo isso pra nos convencer de que, em certos casos, a declaração é até muito justa, "para que de fato não se premie os culpados".
O sujeito era terrível. Devia ser advogada. Fui ficando com muito medo.
Olhava pra algumas pessoas da turma e sentia que as expressões dos rostos estavam mudando. Uns olhavam pros outros. A presença dos pais. O zero em Matemática. As férias perdidas fazendo exercícios de álgebra.
Comecei a suar frio.
A qualquer momento um infeliz daqueles não resistiria e abriria a boca. Todo o colégio saberia da minha vida sexual.
O maldito pai não parava. Falou sobre a "etimologia" do verbo deletar, suas "designações" latinas, e provou que a coisa não era tão ruim assim. Citou uma porção de romanos antigos pra falar sobre "a relatividade dos conceitos éticos" e por aí afora.
Eu estava em pânico.
E o pior. A qualquer momento ia chorar e me denunciar.
O homem se levantou. Sentia-se mesmo num tribunal, o miserável. Um profissional. Devia ser proibido. Caminhou diante dos alunos, com o dedo apontado pra turma toda, questionando se era "válido sofrer por um crime que não se cometeu para acobertar o erro do outro".
Mais da metade da turma já olhava pra ele com aqueles olhos fixos apatetados de quem se deixou convencer. Alguns até balançavam a cabeça pra cima e pra baixo.
Pensei em me entregar logo e acabar com aquela tortura.
Formou uma lágrima pesada no canto do meu olho esquerdo. Seria a primeira de uma longa série se eu não a segurasse. Ela estava engrossando. Ia cair, escorrer pelo meu rosto. Não podia controlar. Meus braços caíram pros lados, sem ação.
Ai senti uma coisa muito estranha. Os dedos de alguém se enfiando entre os meus. Suavemente. Olhei pro lado, assustada.
O João apertava minha mão, olhando firme nos meus olhos.
Não sei onde foi parar a lágrima. Apertei a mão dele também. Mas ele a soltou em seguida, levantou o braço, pediu um aparte e cortou a palavra do homem:
- O senhor está quase certo - ele disse - Mas acredite, a turma toda é culpada. Mesmo que uma menina tenha ficado lá nun canto, sem participar, quem garante que um menino não se meteu na briga pra se mostrar pra ela?
Olhei pro resto da turma. Estavam voltando ao normal.
- Aconteceu um fatto. Erramos. - continuou - Assumimos nossa culpa. Fomos punidos. Engolimos o tal zero e vamos fazer força pra superar isso. Agora, não venha com essa história de justificar a delação porque desse jeito nós, que erramos, que somos os "vândalos", é que vamos acabar dando pra vocês uma lição de ética.

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