Marina acordou com o despertador, às 6h50min, ainda sonolenta e sentindo o coração leve, como todas as vezes em que sonhava com aquele par de olhos azuis, desconhecidos e ao mesmo tempo tão confiáveis. Do sonho não se lembrava mais, sabia somente que aqueles olhos azuis a faziam se sentir em casa.
Sorriu e já ia se levantar, quando se lembrou de que não tinha motivo para isso. Para que levantar cedo, se não tinha mais um trabalho? No dia anterior havia sido demitida do emprego de que mais havia gostado em toda a sua vida. Um banho de água fria no seu estado de espírito.
"Bem-vinda de volta à realidade, Marina", pensou. "Sem olhos azuis, nem vida cor de rosa." E agora também sem emprego.
Não que fosse um de destaque – ela era atendente numa farmácia de produtos fitoterápicos –, mas ela amava aquele serviço e, por isso mesmo, sua mãe havia decidido que, mais uma vez, ela entraria em ação para que Marina fosse demitida. E conseguiu.
Quantos empregos Marina já havia perdido por causa da mãe, depois de incessantes investidas de Ângela contra os seus colegas, visitas inapropriadas aos escritórios, escândalos? Quem precisa de inimigo maior, se tem ao seu lado uma mãe disposta a fazer da vida de sua filha um inferno?
Marina se revirou na cama e desligou o despertador. O que ela faria agora? Tinha exatamente 200 reais para se virar esse mês. Precisava ter coragem para recomeçar do zero e procurar um novo emprego, mas não tinha forças. Ainda mais naquele dia. Hoje ela completava 30 anos. Era, oficialmente, uma solteirona vivendo com a mãe.
Com trinta anos, muitas mulheres já têm suas carreiras solidificadas, ou uma família, ou já viajaram pelo mundo afora, ou todas essas coisas juntas. Ela não tinha nada disso. O tique taque do relógio da vida batia sem dó. Trinta anos, sem diploma, sem dinheiro, sem marido nem filhos.
Tomou um banho e se vestiu, e finalmente tomou coragem e saiu do quarto. E logo viu que a mãe já estava de pé. "Droga!", pensou. Havia demorado demais no chuveiro. Um encontro com a mãe seria inevitável.
Ao entrar na sala sentiu um frio na barriga. Qual seria o humor da mãe hoje? Geralmente os comentários de Ângela já traduziam o seu estado de espírito, que variava de devaneios e explosões de raiva e ódio a uma total apatia, quando ela dormia por horas, por vezes dias seguidos.
"Quem não tem emprego, não tem motivo para sair de casa."
A frase saiu devagar e grave e o sorriso de Ângela era demoníaco, convencendo Marina de que o humor do dia era o de quase sempre: loucura em excesso, com requintes de crueldade. Vinha aí mais uma crise.
Ela sentiu um nó no estômago e sua pele se arrepiou quando sua mãe se aproximou. Era sempre assim quando Ângela estava em crise, como se dentro dela houvesse algo a que a ela fosse alérgica, algo a que repudiava com todas as forças.
"Mãe," - ela foi se afastando com cuidado, tentando ganhar tempo - "eu.... Eu não fui demitida, não sei de onde você tirou isso", mentiu. Tinha raiva de si mesmo nessas horas. Tinha medo da mãe.
"Marina, Marina....", os olhos de Ângela moviam-se rapidamente em várias direções. "Você não precisa me contar nada. As vozes me contam tudo. Tudo!". O sorriso era debochado.
De novo elas, as vozes.
Preferiu não dizer mais nada, apenas seguiu em direção à porta e já ia saindo quando Ângela entrou na sua frente:
"Escuta, é sério!" – ela olhava para os lados, como se estivesse com medo de ser surpreendida a qualquer momento em um raro momento de lucidez - "Hoje, no seu aniversário, é o início do fim. É por causa da profecia, eles vêm te buscar. Fuja, vá embora, fuja minha filha.... E me perdoe.", sussurrou ainda depressa, antes de tombar na frente de Marina, que num impulso ainda a segurou, para que não caísse no chão.
Marina sabia. O estado de espírito número dois entrava em ação. "Loucura e depois apatia completa", pensou. Ângela logo fechou os olhos e numa fração de segundos estava dormindo no sofá. Assim ela permaneceria, quem sabe por quanto tempo dessa vez.
Marina precisava sair dali. Precisava respirar. Ao se levantar, levou um empurrão por trás, caindo sobre os joelhos. Achou que Ângela a tinha empurrado, mas a mãe estava imóvel, e fora do ângulo do empurrão. Marina empalideceu e sentiu um arrepio quando pensou ter visto uma sombra se movendo de um canto para outro da sala, mas ninguém mais estava ali. Embora seus sentidos dissessem outra coisa: ela se sentia observada por mil olhares, e sentiu medo.
Saiu o mais rápido que pode dali e sentiu vontade de ligar para a irmã. Mas o celular pré-histórico havia ficado dentro de casa, e para lá ela não voltava. Tinha, no fundo, inveja de Helena. Aos 15 anos ela saiu de casa e nunca mais voltou. Marina recebia notícias suas de tempos em tempos, mas os encontros eram raros. Ela era livre. Ela teve coragem.
E a família estava aos pedaços. Seu pai também foi ficando cada vez mais estranho com a doença da mãe e um dia partiu, prometendo às filhas que cuidaria delas. Ele era alemão e vivia no Brasil há apenas um ano, quando se apaixonou por Ângela e resolveram se casar. Apesar de ter se adaptado à língua e ao jeito brasileiros, e amar a esposa e as filhas, Maik não suportou o desvario da esposa, que adoeceu quando Marina tinha 8 anos de idade. E voltou para a Alemanha, de onde mandava notícias de vez em quando.
Pensava nisso enquanto dirigia como louca, até chegar à praia de Itaparica, em Vila Velha. O sol era escaldante. Quis molhar os pés no mar. Atravessou até o calçadão, caminhou até a água. Como se pudesse anular o medo e a angústia com água gelada, encheu as mãos e esfregou os olhos, até a ardência da mistura entre sal, areia e lágrimas se tornar insuportável.
De repente, percebeu que não estava só. Sentiu uma presença à sua frente e ao abrir os olhos, Marina se arrepiou ao ver uma mulher de aparência sombria, vestida num traje medieval, parecendo ter sido retirado de um filme. A mulher, olhando-a ameaçadoramente, riu alto e abriu os braços, como se fosse abraçá-la:
"Está pronta para seu batismo, bruxa? Pronta para vir para o Clã das Sombras?"
Com o susto, Marina só pensou numa coisa. Correr. Levantou depressa e correu desesperadamente até o carro. O coração parecia sair pela boca. Olhou para trás e não viu mais ninguém. Fora tudo sua imaginação? Não sabia mais, mas a verdade é que sua respiração estava falhando, ela estava à beira de uma grande crise de asma. Olhou para o hospital que ficava perto do carro e correu até a recepção:
"Estou tendo uma crise de asma!", disparou esbaforida para a recepcionista, que estava de costas ao telefone.
"Aguarde um minuto, eu já....". A recepcionista virou-se e tapou o fone com a mão, mas olhou assustada para a porta, fazendo com que Marina se virasse também. Lá estava ela de novo, a mulher vestida de negro, olhando de forma ameaçadora para Marina.
Ela quis gritar, mas não conseguiu, pois nesse momento um beija-flor entrou voando pela porta que Marina deixara entreaberta. Tudo pareceu se desenrolar em câmera-lenta: o pássaro veio diretamente em direção a ela, que levou as mãos ao rosto, protegendo os olhos. Seu bico tocou o seu braço e ela sentiu que tudo escurecia, tudo em volta de si sumia. E caiu, lentamente, num sono irremediável, mas bom e apaziguador.
Marina sonhou que caía no chão, duro e frio, e o beija-flor voava sobre a sua cabeça. Sentiu que uma pessoa a amparava, um homem, de mãos quentes e grandes, mas não viu o seu rosto.
Ele falava alguma coisa, mas ela não distinguia as palavras. Ainda abriu os olhos novamente, mas sentia muito, muito frio e a cabeça doía demais. Ela precisava dormir, continuar dormindo.
Uma luz ao fundo brilhava, o beija-flor voava sobre a sua mão. Ela quase podia tocá-lo. Mas ele voou para longe, e ela continuou dormindo. Com frio, muito frio.
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Oi pessoal, o beijo do beija-flor levou Marina para bem longe...
As bruxas estão à solta!
Obrigada por estarem acompanhando a história, espero que vocês estejam gostando! Se for o caso, podem deixar uma estrelinha para mim? :)
Também adoro comentários! :)
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O anel do colibri (DEGUSTAÇÃO)
FantasyDurante a Santa Inquisição na Alemanha, um clã de bruxas perdeu a posse do símbolo de seu poder, o Anel do Colibri - e sem ele suas seguidoras ficaram à mercê do clã inimigo. 500 anos depois, uma profecia nomeia Marina, brasileira de 30 anos que nem...