Capítulo 1 - Elisa

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- Ai! – Gritei esfregando meu dedinho recém atropelado pelo bocal do aspirador de pó.

"Talvez eu devesse tirar algumas horas e desfazer as caixas da mudança" – pensei.

Talvez no fim de semana, já que por hora, tudo que eu podia fazer era me vestir para a tal festa. Não que fosse uma coisa completamente odiosa ou coisa assim, mas sinceramente, eu queria descansar um pouco. Depois de um ano inteiro morando em assentamentos de refugiados, eu precisava de um pouco mais de tempo para voltar à vida normal.

Meu celular vibrou em cima da caixa empoeirada com a descrição "objetos de cozinha", peguei e atendi.

- Elisa – Harden disse animado do outro lado – espero que não tenha desistido porque eu sou capaz de ir até aí e leva-la a cerimonia de roupão ou o que quer que seja que você use quando não está de farda.

Philip Harden, um dos poucos – ou único – amigo que me restou nessa vida fora dos moldes. Harden e eu estivemos juntos no Haiti, depois na Faixa de Gaza e recentemente em Angola. Quando se passa tanto tempo com alguém no meio de uma zona de conflito, acredite, a amizade se torna muito, muito solida e íntima.

- Não se preocupe Harden – eu disse sorrindo – não desisti da cerimônia, mas não estou bem certa quanto á festa. Você sabe.

- Sei! – Harden reclamou – Elisa Bonneval, a antissocial.

- Não sou antissocial! – Reclamei rindo, enquanto ajeitava o fecho da sandália – só não gosto de socializar.

- O que te torna antissocial por natureza – Harden brincou de volta.

Passei a chave na porta e segui pelo corredor. O prédio em que eu morava – por hora, já que nada era definitivo em minha vida – era pequeno. Um antigo casarão convertido em pequenos apartamentos de quarto e sala, exceto pela cobertura, que era o único com um certo espaço. Eu não conhecia nenhum dos moradores porque passava tempo demais enfiada em uma barraca, cuidando dos meus doentes.

Desci as escadas e segui em direção à porta principal, o carro de Harden estava parado em frente. Se é que o velho Peugeot vermelho ainda podia ser chamado de carro. Assim que abri a porta, Harden bateu no banco para tirar a poeira, mas só fez espalha-la mais.

- Deviam nos pagar mais – ele disse em sua defesa – eu adoraria ter um daqueles ali – apontou o Audi conversível estacionado do outro lado do meio fio – você ficaria ainda mais bonita dentro dele, Lis bela – brincou.

Sorri porque apesar de vir de um amigo querido, ainda era um galanteio e até onde eu me lembrava, isso era uma coisa boa.

- Eu já te disse que isso é nome de um filme brasileiro, não disse? – Brinquei com o nome.

- Já disse sim – Harden confirmou – mas ficou de assistir comigo para explicar o conteúdo e nunca o fez.

- Vamos fazer isso no domingo! – Respondi beijando seu rosto.

Harden era alto e forte. Cabelos e olhos castanhos, sorriso encantador. O tipo de homem que deixa qualquer mulher de quatro. Para a sorte de Harden – e minha – eu era imune ao seu charme. Não estava aberta ao amor. Pelo menos não esse tipo de amor.

Ele era enfermeiro. Havia chegado ao Haiti alguns meses depois de mim e eu o havia escolhido assim que bati os olhos nele na grande fila de recém-chegados. Harden era bom com crianças. Percebi isso no momento em que ele se abaixou e tentou concertar uma boneca feita de sabugo de milho que uma garotinha havia deixado cair. Eu encarei seu rosto e vi aquele brilho. Aquele, que só existe nos primeiros meses, antes de percebermos que por mais que nos esforcemos, vamos perder mais vidas do que salvar.

Tão MinhaOnde histórias criam vida. Descubra agora