CAPÍTULO XII / NA VARANDA

700 17 2
                                    

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela


boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um


lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas


repetiam o discurso do José Dias:


"Sempre juntos..."


"Em segredinhos..."


"Se eles pegam de namoro..."


Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à


esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo


novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava


não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que


desmentia a abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas;


"Em segredinhos..."


"Sempre juntos..."


"Se eles pegam de namoro..."


Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio


que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze, ao contrário, os


adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro


velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma


cigarra que ensaiava o estilo, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.


Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não


me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo


travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não estabelecemos logo a antiga


intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das


nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor -


outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e


palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava


lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os


meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto


mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis - mas eu retorquia chamando-


lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe


contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar,


que dançávamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a


outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha


com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da


simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a


diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-


lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga.


Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências. A


emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os


silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma


cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de


recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em


Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em


minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia


gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras.


Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com


exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a


quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro.


Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais


Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam,


estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação


da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer


outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a


primeira.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 14, 2016 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Dom CasmurroOnde histórias criam vida. Descubra agora