Chão de Prata

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"Aonde a seca maltrata, o linho não é páreo pro couro, pão é mais caro que prata, água vale mais do que ouro, macambira é melhor do que nata, jumento é mais forte que touro."

Guibson Medeiros


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Sul do Ceará, próximo à cidade de Crato, 30 de março de 1932

A noite estava especialmente fria, o céu claro a revelar uma imensidão de estrelas. Nos desertos, a escassez de vegetação e a baixa umidade do ar não favorecem o surgimento de nuvens, fazendo com que o calor registrado durante o dia rapidamente se dissipe à noite, ocasionando grandes oscilações de temperatura. O sertão do Ceará não é um deserto. Mas é quase.

A seca que se iniciara em 1926 e se estendera até aquele ano, praticamente de forma ininterrupta, transformara o já debilitado solo da região em uma terra árida, estéril. Um imenso e inóspito cemitério. Sob a luz da lua cheia, agora já alta no céu e sem os tons dourados de pouco antes, José Macedo corria por um inusitado chão de prata, refletindo a palidez que vinha do alto. Atrás dele, dois vultos se destacavam por entre as sombras esquálidas e retorcidas da vegetação calcinada pelo sol. Vultos que estavam em sua perseguição.

À sua frente, em algum lugar no vale a várias dezenas de quilômetros de distância, o padre Cícero Romão Batista, mesmo octagenário e com o corpo consumido por uma severa infecção, discutia asperamente com alguém que conhecia José Macedo, mas que não o imaginava – muito menos o queria – tão perto dali. Discussão cujo teor não deveria extrapolar as grossas paredes da antiga residência do padre idolatrado pelos nordestinos. Mas não era para a pequena Juazeiro que José se dirigia, e sim para o vizinho município de Crato, do qual a cidade do Padre Cícero fora distrito até poucos anos antes.

Apesar de não sofrer os males da desnutrição prolongada, que afligia a quase totalidade dos sertanejos dos quais fora companheiro nos últimos dias, os castigos impostos a José pelos seus perseguidores dias antes haviam deixado consequências que ele menosprezara, pelo menos até aquele momento. O ar gelado da madrugada começava a arder em seus pulmões, e as dores nas pernas passaram a tornar seus passos cada vez mais lentos. As árvores e arbustos da caatinga estavam espaçadas e frágeis após seis anos de calor inclemente durante o dia, mas seus espinhos ainda eram fortes o suficiente para rasgar sua pele como uma navalha. Uma não, dezenas delas. Agora entendia porque os vaqueiros usavam pesadas roupas de couro quando perseguiam o gado mato adentro, mesmo sob o sol a pino. Ironicamente, sentiu-se um boi fugitivo naquele exato momento, lutando implacavelmente por sua liberdade. No entanto, a cada olhada para trás, os homens estavam mais próximos. Mas apesar do cansaço, dos ferimentos e da falta de ar cada vez mais angustiante, havia algo mais forte que continuava a impulsioná-lo.

A promessa!

Não uma promessa para o Patriarca do Juazeiro, como muitos faziam naquela época de fome e desespero, mas para a garota que ficara para trás. Uma vida que agora dependia do sucesso da sua fuga. Resolveu não mais olhar para eles e concentrar-se no caminho à frente. Logo no instante seguinte percebeu que havia um grande valado poucos metros adiante, com um amontoado de terra na outra margem, lembrando uma enorme trincheira. Procurou pelos limites daquele sulco negro na terra prateada, e percebeu assombrado que ele tinha dezenas de metros, para um lado e para o outro. Perderia muito tempo, e energia, se resolvesse contorná-lo. Precisava seguir em frente.

Acelerou ainda mais o passo, e então sentiu suas pernas pesarem como se carregasse chumbo. A poucos centímetros do valado, reuniu o que ainda lhe restava de força e lançou-se num salto desesperado à frente, em busca da outra margem. Quase conseguiu. Sua barriga bateu com força na extremidade do buraco, suas mãos lançando-se imediatamente à frente em busca de algo que o ajudasse a não cair na escuridão abaixo. No entanto, elas só encontraram a pilha de areia que havia sido retirada para a formação do que agora lhe parecia uma enorme cova. Sentiu as esperanças se esvaindo à medida que a areia escorria pelos seus dedos, e seu corpo despencou rumo ao desconhecido. Esperou pela dor do choque contra o solo duro e ressecado, mas o valado era mais raso do que esperava. E estranhamente, seu corpo caiu sobre o que pareceu um monte de sacos com areia e pedaços de madeira, que se partiram sob o peso do seu corpo com um estalar abafado.

O Vale dos EsquecidosOnde histórias criam vida. Descubra agora