Rancor e Hard Bop

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Nota a nota Mo' foi compondo sua raiva. 

A despeito de sua boutade contra o Bebop, aconteceu de Lennie Tristano passar a frequentar palcos em que também se apresentavam eminências do estilo, que Mo' considerava herético, repulsivo. Mesmo sua santidade Dizzy Gillespie veio uma noite cumprida trocar suas quiálteras com o pianista. E esse dueto Tristano-Gillespie desafinou o coração empoeirado de Mo' Desmond.

Tudo porque o trompetista acreditava que Lennie seria o profeta de uma certa "Tristano School", solene Academia que pregaria a veneração aos acordes e as regras elementares de harmonia garantindo aos solistas — trompetistas inclusive — um tecido seguro sobre o qual cerziriam suas melodias. E varreria para o limbo os anarquistas do Bebop.

Na verdade tal "escola" só existia nas mirabolações de Mo' e só faria sentido para despeitar o objeto do ódio de Mo' Desmond, a libertina "escola" do Bebop, onde mestres e alunos competiam desenfreadamente aviltando harmonia, melodia, ritmo — e o bom gosto. Mas a verdade que Mo' não via é que o cego Tristano não queria despeitar ou contrapor-se a nada, muito menos quando suas aventuras com o Bebop estavam lhe trazendo algumas gramas de fama.

Porém se não houvesse mais a "Tristano school", Mo' Desmond não poderia ser o seu bedel e nem lançar as bases para a futura, brilhante e invejada "Mo' Desmond School"! E isso riscava os planos prateados de Mo'.

O fim começou quando formou-se o Septeto Tristano, com o qual o mestre promoveria em LP o début de alguns de seus discípulos: os memoráveis saxofonistas Lee Konitz e Warne Marsh eram dois deles. O esquecível trumpetista Mo' Desmond era o outro.

Tudo ia morno e seguro nos primeiros ensaios. Canções feijão-com-arroz salvas da mesmice pelas brilhantes linhas melódicas originais de Desmond, Konitz e Marsh. Tristano feliz em seu mundo escuro de sons coloridos sem ver o que estava para acontecer.

A música do Septeto começou a atravessar o compassos de Desmond quando o consumo de Bourbon e a intimidade forjada nas madrugadas no estúdio criaram as condições para a gravação de duas faixas que, só pelo título, já eram um coice caótico no analítico Mo': "Intuition" e "Digression".

Para Desmond, eram dois longos pesadelos sonoros em repugnante fúria de melodia, harmonia e ritmos que cavoucavam o tímpano dos incautos e erodiam as fundações do que Desmond conhecia por Música com M maiúsculo e Tom Maior.

Quando finalmente foi lançado o tal LP, Tristano e seus rapazes haviam inconscientemente colocado a pedra fundamental do tal "free jazz", sobre a qual por décadas seguintes músicos de todos os matizes ergueriam suas estranhas catedrais. Porém na capa do disco e nos créditos, o Lennie Tristano Septeto já havia minguado para Sexteto. Desmond estava fora, Mo' se fora...

Desmond não podia suportar aquela condenação à liberdade. Nada de intuição ou digressão para ele. No verso do disco, a foto foi podada para retirá-lo de cena e mostrava só seu ex-colegas e perenes desafetos. Quem encarasse aqueles branquelas engalanados — em especial o baixista careca Arnold Fishkin — podia jurar que com aquela palidez epidérmica não poderia haver swing. Mal sabiam eles que o único negro entre os músicos havia abandonado o grupo por "divergências criativas", ou seja: o horror que Desmond nutria por improviso e por toda criatividade que não fosse previamente decantada pelo intelecto.

Desmond estava arrasado. Não só falhara em fomentar a "Tristano School" com seus sacramentos espartanos e torna-la o bastião anti-Bebop quanto ainda contribuíra para o nascimento da besta blasfema chamada "Free" Jazz.


Esse podia ser a coda e o fade out para Desmond, se uma mulata de olhos rasgados e peitos inflados não cruzasse seu caminho. 

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